O Brasil é presidido por um capitão reformado que se confessa objeto de um milagre de Deus que salvou sua vida e o elegeu nas urnas. Deus é a palavra mais usada do escasso vocabulário de Bolsonaro, junto com as armas, a família e a pátria. Em seu discurso de posse, em 1º de janeiro, em poucos minutos falou Deus 12 vezes. No passado, na mesma ocasião, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não o nomeou uma vez sequer, Dilma uma e o católico Lula, duas. Bolsonaro se considera um resgatado pela mão de Deus. “Sou um sobrevivente e devo minha vida a Deus”. A vida e a eleição a presidente.
A fé religiosa pode ser libertadora e opressiva, nunca inócua. Por isso deveria ficar à margem da política. Pode ser escudo e arma. É as duas coisas no Brasil multireligioso em que praticamente não existem ateus e poucos agnósticos. Deus está no sangue dos brasileiros que o usam, dos mais pobres aos mais ricos.
“Eu me pergunto", disse Bolsonaro (após ser eleito com 157 milhões de votos), "o que fiz para merecer isso”. E acrescentou: “Eu não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”. E enquanto se pergunta como pôde chegar à presidência para indicar que foi Deus que o conduziu pela mão, Lula, pelo contrário, se queixa de que o impediram de ser presidente pela terceira vez já que ele, diz, “sabe como governar esse país”. Um duelo entre Bolsonaro, fruto de um milagre, e Lula que sabe para que nasceu. Duelo perigoso.
Ambos, Bolsonaro e Lula, sentem-se ser o novo Moisés capaz de retirar o Brasil de sua latente escravidão, ainda que por caminhos e visões opostas de tal escravidão. Bolsonaro se sente tomado pela mão de Deus, e Lula talvez pense ser a mão desse Deus. Ao juiz Moro durante um interrogatório em um de seus processos por corrupção, Lula disse que a Bíblia proíbe “invocar o nome de Deus em vão”. Bolsonaro se sente o favorito de Deus e Lula parece querer emular esse mesmo Deus. Competição difícil no ringue para elucidar quem o céu escolheu para dar-lhe a vitória final.
Luta inútil por emular o Altíssimo em um mundo globalizado que há tempos escolheu o deus da secularidade após ter se libertado dos deuses religiosos relegando-os à esfera íntima e pessoal. O Brasil ainda está a meio caminho dessa conquista civilizatória enquanto os defensores da teocracia lutam, com Bolsonaro, para mudar a Constituição sacralizando-a e colocando-a aos pés de Deus. O lema de Bolsonaro que o acompanhou durante toda a campanha eleitoral, foi “Deus acima de tudo”. O nome desse Deus ainda é uma incógnita nessa batalha entre duas concepções diferentes de Brasil e da História.
E se tudo fosse uma ilusão, se o Brasil real não fosse o de Bolsonaro e o de Lula, o dos milagres e o dos caudilhos? Talvez a verdadeira esperança de que esse país possa saber expressar um dia a grande riqueza cultural, ecumênica e de convivência pacífica gestada em seu ventre, não passe por milagres e bravatas fora do tempo, e sim pelos caminhos dolorosos e salvadores da liberdade sem cores e sobrenomes.
Os verdadeiros heróis, os criadores da paz e liberdade na diversidade, deverão ser do mais humilde ao mais poderoso do Brasil. Deles, de sua fadiga, de sua capacidade de resistência à barbárie e não de milagreiros, poderá nascer um novo Brasil que leve o sabor do pão sovado pelas mãos juntas de todos os seus filhos.
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