Quando uma distopia publicada em 1962 parece mais atual hoje do que na época em que foi escrita, é porque a Humanidade tropeçou no caminho para o futuro. Além disso, podemos imaginar que o seu autor visitou o futuro, não gostou do que viu, e escreveu o livro com a intenção de alterar o rumo dos acontecimentos. Relendo “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick, ou assistindo à extraordinária série inspirada no mesmo, fico com a impressão de que ambas as suposições são verdadeiras.
Philip K. Dick sabia demasiado sobre o nosso estranho tempo. Disfarçou um pouco, ao escrever, em 1968, “Androides sonham com ovelhas elétricas?” (que deu origem ao filme “Blade Runner”), cuja ação decorre nos nossos dias. É verdade que ainda não confundimos humanos com androides. Contudo, muitas das grandes questões colocadas por Dick no seu romance estão sendo debatidas agora. Fomos avisados — mas não compreendemos o aviso.
O que mais surpreende e perturba no caso d'"O homem do castelo alto" não são tanto os avanços tecnológicos, e a sua eventual má utilização, mas o paralelismo com o recuo democrático que vivemos hoje. O livro defende a tese de que “pessoas normais” — ou seja, pessoas que em circunstâncias democráticas seriam cidadãos pacíficos — podem, quando enquadradas num regime despótico, transformar-se facilmente em monstros abomináveis.
Qualquer pessoa que tenha vivido parte da sua vida sob um regime autoritário reconhece a elementar justiça de tal tese: democracias autênticas tendem a puxar pelo melhor de nós; regimes autoritários, pelo contrário, apostam na cultura do ódio, deformando e corrompendo os seus cidadãos, e transformando muitos deles em delatores e assassinos.
Escrevo esta coluna depois de assistir à quarta e última temporada da série “O homem do castelo alto”. Criada por Frank Spotnitz (“Arquivo X”) e produzida pelo cineasta Ridley Scott para a Amazon, a série imagina um mundo alternativo, no qual os nazistas e os seus aliados venceram a guerra. Os EUA estão divididos. A Costa Leste está ocupada pelo Grande Reich Nazista. A costa do Pacífico integra o Império Japonês.
A série permite-nos ter acesso à intimidade da família nazi-americana. Conhecemos suas ideias e aspirações, mas também as suas dúvidas e receios. O "Reichsführer" John Smith (Rufus Sewell) é um vilão que poderia não o ser — que não o seria em circunstâncias diferentes. E é justamente isso que perturba. Todos nós temos amigos ou familiares que se parecem com aquelas pessoas. Todos nós conhecemos um colega de trabalho ou um vizinho com aspirações a Reichsführer.
As democracias estão em crise. Crise que também é uma crise da esperança e do sonho. Para desmontar um regime democrático há primeiro que abastardar as instituições e os ideais que o sustentam. Um bom exemplo desta política é a recente nomeação de Sérgio Nascimento de Camargo para presidente da Fundação Cultural Palmares. Como já fora antes a nomeação da inefável Damares Alves para ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ou de Ricardo Salles para ministro do Meio Ambiente.
Talvez Philip K. Dick tenha visitado o Brasil do futuro, no início dos anos 1960. O Brasil que temos hoje. Talvez ele tenha visto este presente envenenado.
José Eduardo Agualusa
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