Mas é Bolsonaro quem mais se dedica a atacar a imprensa quando pode. Em suas famosas lives nas redes sociais, a imprensa era o segundo tema mais mencionado até o último dia 19, segundo o jornal Metrópole, que analisou todas as transmissões ao vivo que ele fez aos seus eleitores desde que assumiu o poder. O tema mais citado foi a reforma da Previdência. Num café da manhã com correspondentes estrangeiros, do qual participou Carla Jiménez, diretora da edição Brasil do EL PAÍS, o presidente acusou a imprensa brasileira de envenenar sua imagem no exterior: “Entendo perfeitamente o tamanho do envenenamento do Brasil fora dele”.
Os jornais locais noticiaram que, em sua recente viagem à ONU, Bolsonaro disse a Trump que o amava (“I love you”). Aparentemente, esse amor lhe inoculou a fórmula do ódio aos meios de comunicação e a estratégia, que começa a contagiar o mundo todo, de qualificar como fake news qualquer notícia que simplesmente o desagrade.
Sabemos, entretanto, que ao longo da História todos os aprendizes de ditadores começaram se irritando primeiro com as críticas recebidas na imprensa, e acabaram fechando-a ou transformando-a em um instrumento fiel, como ocorreu com o fascismo, o nazismo e o franquismo, por exemplo. Daí que já seja um clássico na política que os anátemas dos líderes políticos à imprensa sejam o presságio de tentações ditatoriais.
Todos os autoritarismos e extremismos, de direita ou de esquerda, concordam que os meios de comunicação, por amor à pátria, devem estar a favor de suas loucuras e fiéis aos seus ditames, sobretudo quando se leva em conta que tais movimentos extremistas costumam estar impregnados de misticismos religiosos e arroubos nacionalistas.
É curioso que no Brasil um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), indicado nada menos que a embaixador nos Estados Unidos, tenha candidamente admitido que o Governo do seu pai, que batiza eufemisticamente como “conservador”, ainda não conte com uma imprensa conservadora porque foi eleito “sem que houvesse uma universidade conservadora, uma militância conservadora organizada e sem um partido conservador”. E acrescentou: “Por isso tampouco temos uma imprensa conservadora”.
Esse discurso faz sentido aos seus eleitores mais radicais, que tomam as dores de seus governantes. São estimulados a sonhar com um poder que domine tudo, incapaz de conviver com as diferenças e com uma imprensa livre capaz de informar em liberdade. A imprensa se transforma em seguida, onde chega ao poder, em inimizade a combater, inclusive com ameaças de morte aos jornalistas que não se ajoelharem.
É o que acaba de denunciar o jornalista americano Jim Acosta, da CNN, autor do livro O Inimigo do Povo, em uma entrevista à Folha de S.Paulo. Ele, que foi humilhado publicamente por Trump por fazer perguntas das quais o presidente não gostou, está recebendo ameaças de morte, inclusive contra sua família, algo insólito nos Estados Unidos, onde sempre existiu, sob presidentes de todas as tendências, a máxima liberdade de expressão da mídia.
É verdade que nenhum governo, por mais progressista que seja, gosta das críticas da imprensa. Para eles, os meios de comunicação deveriam servir sobretudo para divulgar o bem que eles estão fazendo ao povo, e seria melhor que esquecessem seus pecados. Prefeririam todos uma imprensa asséptica, ou mesmo complacente. A diferença é que, para os ditadores ou aspirantes a tal, não basta esse “não gostar das críticas”; eles preferem emudecê-las, eliminando os protagonistas se for necessário.
Para testar o grau de maturidade democrática de um governo ou de um presidente, basta medir sua capacidade de aceitar críticas, respeitando a lei sagrada da liberdade de expressão ou sua tentação de dobrá-la ou eliminá-la. E, ao mesmo tempo, os meios de comunicação, que tampouco são sempre inocentes, medem seu grau de democracia na medida em que não se omitem de informar às pessoas sobre os desmandos do poder. Há momentos em que é justamente a imprensa que tem a responsabilidade sagrada de denunciar sem meias palavras quando a democracia começa a ser visivelmente ameaçada.
Na história das aberrações no campo da perseguição, não apenas dos jornalistas, mas das ideias, não é possível esquecer quando se fala em liberdade de expressão e de ideias, a famosa queima de livros em público, na Alemanha nazista, apenas porque não coincidiam com as ideias de Hitler. O regime organizou uma marcha com tochas e 25.000 livros foram queimados em público, entre eles obras de Freud, Einstein e Hemingway, arrancadas de bibliotecas e livrarias.
Naquela época, a escritora e ativista, surda e cega, Helen Keller levantou a voz para declarar que “a tirania não pode derrotar o poder das ideias”. E de nada serviu que o “amor cego” ao poder de turno fosse obrigado então nas escolas.
No Brasil já se viveu a censura durante a ditadura, quando jornais que inclusive tinham apoiado o golpe militar, como o Estado de S. Paulo, publicavam receitas ou poemas de Luís de Camões no lugar dos textos censurados. Mas é grave que fora do país comecem a ser ouvidos toques de sino de tentações autoritárias e nostalgias nazifascistas. Ainda não se estão queimando livros, mas já assustou todos os amantes da democracia e da liberdade o recolhimento de um livro de literatura infantil com desenhos de um casal gay na importante Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
Na Alemanha de Hitler se exaltava a “limpeza do espírito alemão”, que era um passaporte a todas as aberrações, e se proclamava o slogan copiado hoje pelo presidente brasileiro: “Alemanha acima de tudo”. Aqui, é “Brasil acima de tudo” e, além disso, “Deus acima de todos”. Que Deus? Na Itália, Benito Mussolini, que era ateu militante, acabou como defensor do Vaticano e beijando o anel dos papas. E até batizou seus filhos como católicos. Os votos da Igreja valiam isso e muito mais.
Franco, na Espanha, considerado um militar sem religião, acabou saindo em procissão na rua, com o privilégio do Papa de andar sob o dossel como o Santíssimo Sacramento, acompanhado por bispos e cardeais que emudeceram quando o Caudilho começou a controlar os meios de comunicação colocando censores até dentro dos jornais, que decidiam o que se podia publicar ou não, pelo bem da Pátria.
Somente quando os primeiros jornais livres começaram a sair às ruas na Espanha, depois da morte do ditador em 1975 – entre eles este em que escrevo desde então –, as pessoas souberam que a barbárie de uma das ditaduras mais longas e duras da Europa havia perdido e a liberdade havia renascido.
Pouco tempo depois do restabelecimento da democracia ainda ressoavam ímpetos autoritários. Em 23 de fevereiro de 1981, militares atacaram o Congresso durante uma votação, em Madri. Com armas em punho, o tenente-coronel Antonio Tejero controlava o lugar e não escondia suas intenções. Retomar o poder para os militares. O então rei Juan Carlos repudiou o movimento, enquanto os tanques do Exército se dirigiam para tomar a redação do EL PAÍS. Sob intensa adrenalina, o então diretor Juan Luis Cebrián e sua equipe tiveram que reagir rapidamente. Para informar os espanhóis sobre o risco de cair novamente em mãos autoritárias, produziu uma edição especial do jornal e colocou na capa a manchete em letras grandes: “Golpe de Estado, EL PAÍS com a Constituição”.
Fizeram um rápido editorial dizendo que acontecesse o que fosse nas horas seguintes, o jornal estaria a favor da Constituição e da democracia. A edição especial começou a ser distribuída de mão em mão nas ruas para que as pessoas ficassem sabendo do que estava acontecendo e fortalecessem a resistência. Havia uma missão especial que era fazer chegar um exemplar com o duro editorial ao Congresso ocupado militarmente. Assim os golpistas saberiam que não teriam o poder tão fácil. Quando o exemplar do EL PAÍS entrou no Congresso, os jornalistas presentes entenderam que o golpe havia fracassado e a democracia tinha ganhado.
Juan Arias
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