Antônio tomou conhecimento da mensagem graças a um informante, em outubro do ano passado. O agente despertou a fúria de criminosos por fazer seu trabalho. Após flagrar um caso de exploração ilegal de madeira em sua área de atuação, ele ordenou a destruição do maquinário de propriedade dos infratores.
Trata-se de uma prática adotada por fiscais do meio ambiente nas situações em que não há formas de apreender os equipamentos. Prevista na Lei de Crimes Ambientais, de 1998, a medida foi regulamentada dez anos depois, por um decreto presidencial que visava a desestimular o crime ambiental.
A frágil estrutura do Judiciário nas regiões que concentram o desmatamento enfraquecia a efetividade da fiscalização ambiental. Pela média histórica, somente 5% do valor cobrado em multas pelo Ibama é efetivamente pago. O procurador da República Daniel Lôbo, que chefia o Ministério Público Federal em Rondônia, assinala a especial importância da prática no contexto de fragilidade orçamentária da autarquia.
"Quando derem estrutura para os órgãos locais retirarem os equipamentos, a melhor alternativa será a apreensão e venda posterior. Remover o maquinário gera um custo ao poder público, de diária e armazenamento no local. Mas, sobretudo, é arriscado. As equipes estão em uma situação de exposição a pessoas armadas”, afirma.
Especialistas consideram que a medida foi determinante para a queda nos indicadores do desmatamento no Brasil. Entre 2004 e 2014, a área desmatada na Amazônia caiu de 27 mil para 5 mil quilômetros quadrados.
Apesar disso, a DW Brasil apurou que, em abril deste ano, os fiscais do Ibama receberam uma orientação interna para interromper o procedimento de destruição de maquinário. A ordem foi repassada de maneira informal pela presidência do órgão.
A determinação coincidiu com a publicação de um vídeo, em abril, pelo senador Marcos Rogério (DEM), de Rondônia, em sua página oficial no Facebook. Nele, o presidente Jair Bolsonaro desautorizava uma ação do Ibama que destruiu caminhões e tratores de madeireiras no estado.
"Ontem, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, veio falar comigo com essa informação. Ele já mandou abrir um processo administrativo para apurar o responsável disso aí. Não é pra queimar nada, maquinário, trator, seja o que for, não é esse procedimento, não é essa a nossa orientação”, disse o presidente.
A reprimenda do presidente da República à atuação do Ibama foi mais um capítulo em uma série de ataques iniciada ainda na campanha eleitoral do ano passado. Em palanques Brasil afora, o então candidato Jair Bolsonaro disparou críticas em série aos órgãos de fiscalização ambiental.
"Não podem continuar admitindo uma fiscalização xiita por parte do ICMBio e do Ibama, prejudicando quem quer produzir”, afirmou durante evento de campanha em Rondônia.
Diferentes agentes ouvidos pela reportagem afirmam que o discurso de Bolsonaro teve um efeito imediato de agravamento da hostilidade dos criminosos, que ficaram cada vez mais à vontade para intimidar o trabalho de fiscalização.
"Foi como colocar fogo nos tambores de gasolina”, avalia Antônio. "A grande diferença desse governo é que, antes mesmo de ele entrar, já começou a ficar complicado para nós”.
Em julho deste ano, um caminhão-tanque que levava combustível para abastecer helicópteros do Ibama em uma operação em Rondônia foi incendiado, no município de Espigão do Oeste. Outros ataques semelhantes foram registrados no mesmo estado, além do Amazonas e Pará.
"O motorista comentou no posto onde abasteceu que prestava um serviço para o Ibama, e rapidamente a informação circulou. Os criminosos têm informantes em toda parte”, conta Antônio.
Ciente da vigilância constante, os cuidados vêm sendo redobrados para garantir a eficácia das operações e a segurança dos agentes. Em áreas urbanas, durante os deslocamentos para as áreas de infração, suas equipes ficam alojadas em postos policiais e levam a própria comida para evitar hotéis e restaurantes.
Na floresta, chegam a ficar acampados por três dias, somente com os alimentos que levam consigo. "O jeito é ficar esperto e agir com o mesmo ritmo, senão não consegue dar flagrante. Eles derrubam pontes e te impedem de avançar”, diz Antônio.
Suas equipes saem das bases do Ibama sem saber o destino. Há alguns meses, o coordenador passou a informar locais diferentes daqueles onde serão realizadas as operações ao lançar as diárias internamente. "Dentro do Ibama, tem gente vendendo informações sobre para onde você vai. É um problema antigo nosso”, denuncia.
Como resultado da vulnerabilidade crescente, muitos agentes optam por deixar de ir a campo ou solicitam transferência para locais menos conflagrados. Há quem dê baixa do serviço por problemas de saúde mental, decorrentes das ameaças.
Por sua vez, servidores de longa data correm para escapar das novas regras previdenciárias. Uma média de 15 servidores têm se aposentado a cada mês — um baque operacional para o Ibama, que não tem concursos desde 2009 e apresenta um déficit de 2 mil funcionários.
Em abril, Ricardo Salles anunciou uma redução de 24% no orçamento anual do órgão, na esteira de cortes de gastos feitos pelo governo em diversas áreas. Verbas do Fundo Amazônia, que garantiam a locação de carros para as operações, também estão ameaçadas.
"Minha equipe de nove pessoas pode ter só duas no ano que vem. Não sei como vamos ter condições de trabalhar”, diz um coordenador. Os efeitos já são sentidos. Em agosto, o MPF no Pará abriu inquérito para investigar a redução do número de fiscalizações ambientais na região nos meses anteriores.
"É uma soma do medo de sofrer represálias pelas destruições com a deslegitimação do trabalho do Ibama. Se o infrator é legitimado pelo governo, não vai ser o fiscal que irá contestar”, avalia um coordenador do órgão. "Além do fato de não haver lideranças legítimas nos estados e na sede”.
A DW Brasil apurou, ainda, que houve risco de boicote por funcionários do Ibama à atuação em apoio à operação de Garantia da Lei e Ordem (GLO) desencadeada pelo governo federal para conter a onda de incêndios criminosos na Amazônia, em agosto. A ação envolvia uma atuação conjunta com as Forças Armadas.
Um grupo expressivo de fiscais entendia o movimento do governo como uma tentativa de salvar o ministro Ricardo Salles no cargo, em meio à crescente pressão internacional.
A iniciativa foi demovida pela coordenação operacional do órgão. Além do compromisso com a sociedade, predominou a tese de que a atuação naquele contexto era fundamental para mostrar ao mundo a importância da atuação do Ibama como órgão especializado no combate a crimes ambientais.
No rescaldo da onda de queimadas, Ricardo Salles nomeou seis novos superintendentes estaduais do Ibama no início de setembro. Até então, 19 das 27 unidades regionais estavam sem representantes, após uma exoneração em massa conduzida pelo ministro em fevereiro.
No Pará, estado que lidera o desmatamento, o coronel da Polícia Militar Evandro Cunha ficou apenas uma semana no cargo. Ele foi exonerado após afirmar que iria cessar a destruição de equipamentos apreendidos em garimpos ilegais no estado.
"O trabalhador merece respeito, e terá o respeito do governo federal. Eu sou soldado e eu sei cumprir ordem, a ordem que recebi foi para parar com isso daí", declarou, durante audiência pública no município de Altamira.
Um quadro de semelhante precarização e vulnerabilidade é observado na atuação do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). A partir deste mês, apenas dois servidores atuarão sozinhos em cinco Unidades de Conservação de vasta extensão na Terra do Meio, um dos mais importantes blocos para a conservação da sociobiodiversidade do planeta.
"A situação das unidades de conservação da Amazônia é caótica, com algumas unidades à beira de fechar as portas. Faltam pessoas em todos os lugares e para tudo”, constata um servidor do órgão.
O quadro é ainda mais grave na Fundação Nacional do Índio (Funai), que tem um papel indireto na fiscalização ambiental ao atuar na defesa de terras indígenas demarcadas. A autarquia opera com 10% do orçamento desde janeiro. Em algumas unidades, os servidores sequer têm acesso a papel higiênico.
Há um mês, o indigenista Maxciel Pereira dos Santos foi assassinado com um tiro na nuca na região do Vale do Javari, local que abriga a maior concentração de povos indígenas isolados no mundo. Ele atuava junto à Funai há 12 anos. Nenhum servidor do órgão aceitou falar com a reportagem, pelo medo de represálias.
Deutsche Welle
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