domingo, 13 de janeiro de 2019

Nenhum véu cobre as estrelas

O que escreve o homem mais poderoso do mundo em seu diário? Que aflições surgem nas anotações pessoais de um homem que tem sob seu comando o país mais rico e o melhor exército do planeta? Não, não estou falando de Donald Trump, e sim do imperador de Roma no século II d.C., Marco Aurélio.

No filme Gladiador , Marco Aurélio aparece como um governante idoso e sábio (interpretado pelo ator Richard Harris) cuja morte dá início à decadência do império romano. Na vida real, ele morreu com apenas 58 anos, mas o filme não está longe da verdade ao mostrar seu reinado como um período de relativa paz e prosperidade, após o qual nunca mais Roma teria a mesma grandeza. Quanto à fama de sábio, podemos tirar nossas próprias conclusões ao ler suas Meditações , conjunto de anotações pessoais que são um dos livros mais singulares e mais influentes escritos por um homem público em qualquer época.

Temos todas as razões para crer que as Meditações não foram escritas pensando em outros leitores além do próprio Marco Aurélio. O texto é um conjunto de anotações esparsas, agrupadas sem critério e com algumas alusões obscuras a eventos e pessoas que só o próprio autor poderia entender. O livro não tem nem mesmo um título oficial; em grego antigo, o idioma em que foi escrito, ele era chamado despretensiosamente de Escritos para si mesmo . Mais tarde, receberia outros títulos: Meditações, Pensamentos , Solilóquios ...


Em que pensava Marco Aurélio? Seus problemas não eram pequenos: por um lado, hordas de marcomanos, quados, sármatas e outras tribos bárbaras ameaçavam constantemente as fronteiras do império; por outro, os romanos travavam uma longa guerra com o império parta, seu maior rival. Como se fosse pouco, uma doença mortífera e contagiosa, a peste antonina, dizimou mais de cinco milhões de pessoas durante seu reinado. Mas nada disso aparece de forma direta nas anotações pessoais de Marco Aurélio. Suas preocupações eram mais básicas e atemporais: qual a melhor maneira de viver a vida? Como ter certeza de que o que fazemos é correto? Como lidar com a morte e o sofrimento?


As obsessões de Marco Aurélio são poucas, mas fundamentais. As Meditações não apresentam conceitos inovadores, nem um sistema filosófico organizado; são apontamentos que repetem insistentemente as mesmas ideias em formulações diferentes, como se através dessa repetição Marco Aurélio buscasse fixar seu próprio entendimento de certas verdades essenciais, um entendimento nascido da experiência prática e não da crença em qualquer dogma ou doutrina.

Uma dessas verdades é a necessidade de analisar regularmente os acontecimentos da vida, incluindo as próprias ações e pensamentos: “Nada favorece tanto o crescimento espiritual quanto essa capacidade de estudar de forma metódica e detalhada tudo que nos acontece”.

Isso vale também para os que estão próximos de nós: “Quando estiver precisando de estímulo, pense nas qualidades boas de seus amigos: a capacidade de um, a modéstia de outro, a generosidade de um terceiro, e assim por diante”. O próprio Marco Aurélio dá o exemplo, fazendo um exercício que nos impressiona por sua simplicidade e eficácia: o primeiro livro das Meditações é uma lista detalhada de tudo que ele aprendeu com cada parente, amigo, professor e colega. De seu professor de retórica, por exemplo, ele diz o seguinte: “A meu mentor Fronto devo o entendimento de que malícia, perfídia e hipocrisia são inerentes ao poder absoluto; e que nossas famílias ‘de bem’ tendem, quase sempre, a faltar com os mais básicos sentimentos de humanidade”.

Do ponto de vista ético, as Meditações insistem na necessidade de identificar o que está e o que não está sob nosso controle, e saber agir de acordo com essa distinção. Mesmo o homem mais poderoso do mundo reconhece com humildade que aquilo que de fato podemos controlar está aquém do que geralmente supomos: nosso próprio corpo, nossos pensamentos e nossas ações, e só. O fundamental é fazer o melhor possível com o que está ao nosso alcance: “O que é o melhor que posso fazer ou dizer com os materiais de que disponho? Não importa o que for, você tem o poder de dizer ou fazer. Não invente desculpas”. 

A coerência de cada pessoa com seus próprios princípios, expressa em suas palavras e ações, é o refúgio que está disponível a cada um de nós, seja quais forem os nossos problemas: “Se você fizer seu trabalho de forma honesta, com cuidado, energia e paciência, sem se distrair com besteiras nem perder sua humanidade, e mantendo a divindade dentro de você pura e firme, como se tivesse que devolvê-la a qualquer momento – se você fizer isso sem medo nem expectativas, buscando apenas que cada ato seu esteja em harmonia com a natureza e que cada palavra sua seja rigorosamente verdadeira, então você será feliz. E ninguém poderá impedir isso”.

Igualmente importante, para Marco Aurélio, é saber reconhecer e aceitar com naturalidade todos os acontecimentos que fogem ao nosso controle: “Assim como você não se surpreende quando uma figueira dá figos, é absurdo se surpreender quando o mundo produz sua safra normal de acontecimentos. Um médico não se surpreende quando seus pacientes têm febre, nem o timoneiro se surpreende quando enfrenta um vento contrário”. Por um lado, isso implica não se perturbar com as ações e palavras dos outros; se você estiver realmente em paz com sua consciência, nenhuma palavra ou ação alheia poderá lhe abalar: “Alguém me despreza? Problema dele. O meu problema é garantir que nada que eu faça ou diga possa justificar esse desprezo”. Por outro lado, somos levados a admitir que o mundo está em mudança permanente: “Você está com medo da mudança? Mas há algo que possa existir sem ela? Há algo que esteja mais próximo da essência da natureza? Você consegue tomar um banho quente sem que a lenha tenha que passar por uma mudança? Você consegue comer sem que a comida tenha sofrido alguma mudança? Há algum processo vital que aconteça sem mudança? Você não vê que é a mesma coisa com você – que quando você muda isso é igualmente natural?”

A consequência lógica dessa aceitação é estar absolutamente à vontade com a morte. São inúmeras as vezes em que Marco Aurélio lembra a si mesmo da própria impermanência: “Finja que você morreu hoje e que sua história de vida acabou. De agora em diante, veja o tempo que lhe for dado como um acréscimo imprevisto, e viva em harmonia com a natureza”; “Alexandre da Macedônia morreu do mesmo jeito que o rapaz que tomava conta dos cavalos dele, e a mesma coisa vai acontecer com você”; “Logo você terá esquecido o mundo e o mundo terá esquecido de você”.

Bom, pelo menos nessa última frase creio que ele se enganou. São incontáveis os estadistas, artistas e pensadores que têm lido e apreciado as Meditações através dos séculos, de Frederico, o Grande a Bill Clinton, de Goethe ao ex-primeiro-ministro chinês Wen Jiabao. Não é difícil entender a atração que esse livro continua exercendo sobre tanta gente, quase 19 séculos depois da morte de Marco Aurélio. É raro, muito raro que alguém escreva de forma tão prática, com tanta clareza e tanta franqueza, sobre questões tão essenciais e tão perenes. Que esse alguém tenha sido o homem mais poderoso do mundo em uma época já bem distante da nossa, é tanto um sinal das mazelas do nosso tempo como um orgulho para a espécie humana. Enquanto existirem humanos, eles poderão olhar para o firmamento e pensar nessas palavras: “Os Pitagóricos nos aconselham a contemplar os céus ao amanhecer, para nos lembrar como os astros executam suas tarefas – sempre as mesmas tarefas, sempre do mesmo jeito; e para nos lembrar também de sua ordem, pureza e nua simplicidade, pois nenhum véu cobre as estrelas”.
Gustavo Pacheco

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