segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Hoje é o primeiro dia útil do resto das nossas vidas pandêmicas

Hoje é o primeiro dia útil do resto das nossas vidas pandêmicas e é preciso, sem baixar a máscara, insistir em sorrir. Pairam dúvidas sobre a chegada de um segundo dia, o terceiro é especulação com enorme margem de erro e o dia da vacina, então, este ninguém sabe quando de fato se dará. Nada é certo, tudo a confirmar. Você está no Brasil — o futuro a Deus pertence, o presente a ninguém convence e o passado desde anteontem não se responsabiliza sobre o que doravante passará.

Falta pouco, não se sabe muito bem quanto, as notícias carecem de exatidão, mas chegou o primeiro dia útil do resto de nossas vidas quarentenadas, aquele que ao final dos carimbos da Anvisa, ao terceiro cantar do galo, ao soar do carrilhão com as 12 badaladas, levará os sobreviventes de 2020 à fila de onde recomeçarão suas existências interrompidas.


Isso aqui é o fim do mundo, a ponta da praia, o fim do asfalto civilizatório, o atropelo da razão, mas anunciaram e garantiram, ao contrário do combinado naquela reunião do ministério, que o brasileiro-profissão-esperança não vai mais se acabar. Já teve a live do Caetano, agora vai ter a vacina da Covid. É preciso apenas reforçar o álcool gel nos dedos, botar a mão na consciência e aguardar o momento em que, pelo telefone, pelo Twitter ou soltando morteiros, o chefe da pandemia vai avisar — chegou a hora!

Ainda não abrace, ainda não sussurre, ainda não aglomere, visto que tudo necessita de aprovação emergencial em duas vias, registro sanitário com firma reconhecida, pelo órgão fiscalizador de saúde pública. O Brasil demora. Enquanto o tempo não ruge com a pressa devida, mentalize o frasquinho congelado a menos de 70 graus, imagine a agulha tatuando numa só picada o dragão da esperança no braço e, relaxa, ouve de novo a canção do Belchior, aquela do ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro na praia.

A qualquer momento, diretamente da cabine refrigerada da memória, o locutor Waldir Amaral vai dar o aviso, “o relógio maaaaaaaaaarca!”, e você será liberado para reabraçar o abraço, rebeijar o beijo e redançar a premonitoriamente feliz “Imunização racional (Que beleza!)”, do Tim Maia, desde já a música do verão 2021. A musa da estação veio de Oxford, residente em Manguinhos, a inglesinha Astrazeneca. Inocula em todos o tesão da nova chance.

Não é mais uma segunda-feira daquelas denunciadas pelo Luis Fernando Verissimo, em que, depois de ter criado o mundo em seis dias e descansado no domingo, Deus costumava se arrepender de tamanha besteira.

Hoje é o primeiro dia útil rumo ao que os mais simples, na dúvida sanitária se optam pela de adenovírus modificado ou RNA mensageiro, julgarão ser apenas uma dose de vacina espetando os braços. Aos mais sofridos, aos corações fora do peito, desgraçados por tanta solidão, será o passaporte de reentrada no futuro que restou de nossas vidas amordaçadas. Falta pouco. É preciso manter distância das tentações, desaglomerar da multidão e esperar, que já se ouve na esquina a nova trombeta dos anjos, o novo tropel da cavalaria salvadora. Os anticorpos estão chegando.

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