sexta-feira, 8 de maio de 2020

Brasil está perto da quebra democrática

Desde que acabou o regime militar, nunca o Brasil esteve tão perto da quebra democrática como na presidência de Jair Bolsonaro. Mesmo assim, um golpe de Estado tem menos chances de acontecer do que a manutenção da democracia. As instituições democráticas são mais fortes do que em 1964, a maior parte da sociedade (2/3 dela, pelo menos) não quer repassar um poder autocrático ao bolsonarismo e o país terá enormes dificuldades no plano internacional se adotar essa via. Entretanto, o golpismo não pode ser descartado. Afinal, o presidente tem estimulado atos autoritários e as reações têm sido mais tímidas do que deveriam ser.

Parafraseando o saudoso Aldir Blanc, morto pela covid-19 nesta semana, o Brasil dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar. Embora menor que na década de 1960, há um risco de quebra democrática que parece cada vez mais aterrorizante após as manifestações realizadas aos domingos em frente ao Palácio do Planalto, as chamadas “coronafest”, com pessoas louvando o autoritarismo e ignorando a pandemia. Qualquer leitura de todo o mandato até agora constataria que Bolsonaro e seus seguidores não vão diminuir o ímpeto radical. Quem apostou no contrário ficou no meio do caminho, como Bebianno ou o general Santos Cruz.

Como o perigo está batendo à nossa porta, é importante para o país construir um cenário em que o bolsonarismo chega de forma autoritária ao poder, comparando-o com o golpe de 1964. Para começar, Bolsonaro teria muito menos apoio social e teria de ser mais revolucionário, isto é, alterar mais profundamente as instituições e suas relações com a sociedade. A mídia, o grande empresariado nacional e internacional, parte da classe média mais escolarizada, os Estados Unidos e, sobretudo, a maioria dos políticos com mandato compunham os grupos que deram suporte à chegada de Castelo Branco à Presidência.


Um movimento bolsonarista de tomada do poder teria uma base social diferente. Seria composta, principalmente, por grupos de pequenos e médios empresários, por parcela de profissionais liberais e da classe média que perderam status social nos últimos anos, por uma parte de evangélicos liderados por pastores com grande participação política e ainda por um conjunto de lideranças midiáticas, especialmente advindas da internet. Não se trata de um conglomerado pequeno de pessoas, embora haja numa parcela dos bolsonaristas uma certa instabilidade de posição, que poderá ser atingida tanto pela pandemia como pela crise econômica - as últimas pesquisas de opinião já estão mostrando isso.

Haveria maiores dificuldades para a atuação do bolsonarismo golpista nos grandes centros urbanos, onde há mais movimentos e organizações sociais independentes e um conjunto grande da população pobre que rejeita Bolsonaro desde 2018. Além disso, as capitais e seu entorno têm sofrido mais com as mortes pela covid-19, e isso não será fácil de esquecer para milhares de famílias. De todo modo, mobilizações nas maiores cidades e regiões metropolitanas poderiam gerar um conflito não só entre posições políticas, mas com forte violência física.

O golpe de 1964 interrompeu a democracia, mas não foi feito sem o apoio de parte das principais elites políticas e econômicas da época. Importantes lideranças políticas apoiaram a queda de João Goulart. Os principais governadores participaram fortemente da conspiração, especialmente Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. São Paulo foi o epicentro econômico da queda do regime, com o apoio das maiores empresas brasileiras e estrangeiras. O comando da opinião pública majoritária estava no Rio, lugar que concentrava muitas das barreiras ao golpismo e, não obstante, onde também havia uma mídia e intelectuais que deram um suporte importante à quebra democrática.

Voltemos aos dias atuais. Quem daria o suporte político a um golpe organizado por Bolsonaro? No Congresso Nacional, nem a cúpula nem a maioria de deputados e senadores apoiaria esse processo autoritário. Os governos estaduais e das capitais têm se colocado cada vez mais contra as decisões de presidente. Dado esse conflito federativo, uma quebra democrática bolsonarista desorganizaria o sistema político-administrativo, uma vez que as principais políticas públicas são implementadas pelos governos subnacionais.

São Paulo não cumpriria a função de locomotiva de um regime autoritário como no passado. O governador João Doria, o prefeito Bruno Covas e as lideranças mais expressivas de sua economia, vindas da indústria, dos serviços e do sistema financeiro, não aceitariam esse papel. Sabe-se que algumas entidades empresariais têm sido governistas desde sempre, contudo, elas não conseguiriam atrair para uma aventura golpista o lado mais dinâmico da economia, que hoje tem fortes conexão com estruturas globalizadas. Em outras palavras, Bolsonaro teria que gerar uma guerra enorme com as elites paulistas e com o oposicionismo típico da região metropolitana que contém mais de 21 milhões de habitantes.

Quando comparado ao golpe de 1964, o bolsonarismo teria de fazer uma destruição institucional muito maior, porque grande parte do sistema está contra ele - sem que a maioria dos pobres apoie ou se mobilize pelo presidente. Seguindo sua lógica de atacar as instituições, Bolsonaro tenderia a cassar a maioria dos parlamentares. Ele também teria que, logo de cara, aposentar compulsoriamente todos os ministros do STF, pois todos são suspeitos para as hostes bolsonaristas, quando somente em 1969 começou o expurgo no Supremo feito pela ditadura.

Indo mais direto ao ponto: dada a atual correlação de forças e resistências institucionais, bem como em razão da visão ideológica do bolsonarismo, muito mais radical hoje do que em 1964, o AI-5 teria de ser o primeiro ato de um governo autoritário comandado por Bolsonaro. Não haveria espaços para acomodações iniciais com os políticos nem com o Judiciário, muito menos com a “accountability” vinda da sociedade ou do Ministério Público. Seria uma revolução desde cara, com grande desorganização do país e forte tendência de gerar violência por todos os lados.

Uma quebra democrática agora não teria apoio internacional algum. Muito pelo contrário: o mais provável seria sofrer represálias da Europa - seria o fim da entrada na OCDE. Trump não apoiaria Bolsonaro porque haverá eleições presidenciais neste ano, e ele prefere sua reeleição acima de tudo. Como os democratas têm um grande poder no Congresso americano, é bem provável que viessem sanções dos Estados Unidos ao Brasil. Todo esse imbróglio levaria bilhões de dólares para fora do país. No fundo, alguém precisa dizer ao presidente que acabou a Guerra Fria - e não será o ministro da Relações Exteriores que fará isso.

O pior é que a lógica radical do bolsonarismo, que depende de construir inimigos a todo momento, também levaria a um conflito explicito com a China. Aqui vale lembrar que o regime militar, afora um ou outro arroubo ideológico, no geral foi mais pragmático na política externa. Não se pode esperar pragmatismo político de Bolsonaro, menos ainda se ele ganhar um poder autocrático. Por isso, seria esperado que fosse reforçada a ideia do perigo do comunismo chinês e as exportações brasileiras do agronegócio sofreriam um enorme baque.

Se levado adiante, um golpe bolsonarista poderia ter a participação de parte dos militares no processo, todavia, a instituição militar perderia muito com tudo isso porque, ao contrário do outro regime, não seria ela a condutora do governo. Seria um governo de um líder carismático e extremista, que é ex-militar, usando os militares. Pior do que isso só a possibilidade de Bolsonaro tentar se segurar no poder por meio de milícias, compostas por civis recrutados, por policiais das forças subnacionais e por membros de patentes menores das Forças Armadas. Seria o fim de um projeto institucional construído desde o fim da Guerra do Paraguai, que daria lugar ao bolsonarismo como organizador da coerção estatal.

O tamanho do problema advindo de um golpismo seria muito maior diante do contexto atual, em que vivemos a maior crise do país desde a Segunda Guerra Mundial, com uma combinação terrível de pandemia, estagnação econômica, aumento da desigualdade social e da polarização política. Quem participasse de um processo como esse perderia muito não só no curto prazo, mas para sua imagem na história. Os militares estariam dispostos a isso?

Como dito no início do artigo, esse cenário, felizmente, não é o mais provável. Porém, montá-lo é útil para, em primeiro lugar, evitar de todo modo que a democracia seja rompida. Nossos filhos e netos não merecem que o destino do país seja entregue a um chavismo de extrema direita. Além disso, mostrar o que seria uma distopia bolsonarista realça o seu contrário, isto é, o que deveríamos fazer para sair democraticamente da imensa crise atual. Algo que exigirá não só ideias melhores, mas lideranças e acordos políticos acima da polarização que nos comanda desde 2013. Para essa tarefa, Bolsonaro não tem sido o líder adequado e nem parece querer ocupar esse papel. O modo bolsonarista de governar, em suma, é um problema com ou sem golpe, deixando-nos numa corda bamba de sombrinha - e agora sem a beleza da poesia de Aldir Blanc.
Fernando Abrucio

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