domingo, 29 de maio de 2022

Sufocados estamos

Maya Angelou sabia das coisas. Sabia o que fazer com a própria vida — tanto que morreu oito anos atrás como a mais celebrada poeta e escritora negra dos Estados Unidos. “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola” e “A vida não me assusta” são apenas alguns de mais de 30 títulos que compõem sua obra. Ainda no início de 2022, Angelou se tornou a primeira mulher negra cuja efígie é estampada numa moeda americana (o popular quarter de 25 centavos de dólar). Recebeu essa última honraria não só pelo que escreveu, mas pela tenacidade com que escolheu combater a discriminação racial ao longo de sua vida cívica. Criança, conhecera na carne o elenco de medos e misérias decorrentes do racismo. Jovem e adulta, lutou lado a lado de Malcolm X, o líder ativista assassinado em 1965, marchou de braço cerrado com Martin Luther King e seguiu marchando junto aos que lhe sucederam. Madura, concluiu:

— Aprendi que as pessoas esquecem o que você disse, esquecem o que você fez, mas jamais haverão de esquecer o que você as fez sentir.


Wallison de Jesus é sobrinho de Genivaldo de Jesus Santos, o sergipano de 38 anos abordado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) numa estrada enlameada de Umbaúba. À luz do meio-dia, Wallison viu o tio levantar a camisa e erguer os braços, mostrando aos agentes não estar armado. Trazia consigo apenas os medicamentos para esquizofrenia que lhe permitiam viver em paz. Viu o tio ser derrubado à força, debater-se, ser imobilizado, amarrado e socado no camburão. Com a cabeça, o tronco e parte das pernas do tio enfiados na viatura, o sobrinho ainda viu que os pés e as canelas finas de Genivaldo impediam o fechamento da porta. Por fim, viu os agentes jogarem spray de pimenta e gás lacrimogêneo no interior do camburão. Lufadas de nuvens tóxicas puderam escapar pelas frestas do porta-malas. Genivaldo, não. Morreu de asfixia ali dentro.

O Brasil inteiro tornou-se testemunha desse crime hediondo graças aos vídeos feitos por moradores de Umbaúba, que a tudo assistiram em agonia, desespero, horror. E resignação diante de um poder sem freios. Como exigir que interviessem, que impedissem? Um dia antes, uma operação deflagrada pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), da Polícia Militar do Rio, em conjunto com a PRF, havia deixado um rastro de pelo menos 23 cadáveres na Vila Cruzeiro, favela da Zona Norte da capital fluminense. Os relatos de execuções, torturas, tiros de fuzil no rosto dessa chacina cega por parte do Estado do Rio talvez já tivessem chegado a Umbaúba quando o tio de Wallison foi abordado. Como então não ter medo sendo apenas um cidadão civil e negro?

Vale lembrar que Genivaldo foi abordado e morto por dirigir moto sem capacete perto de sua casa. Alguma vez algum agente da PRF ou de outra unidade policial cogitou abordar o presidente da República pelas infrações que gosta de cometer país afora, em terra ou mar? Ou um único integrante de suas motociatas? A pergunta é simplória. Mas a brutalidade policial brasileira também é.

A jornalista Jeniffer Mendonça, do site Ponte Jornalismo, teve acesso ao primeiríssimo boletim de ocorrência registrado na Polícia Civil de Umbaúba sobre a morte do sergipano. O documento é aterrador pelo que deixou de dizer e fazer. Os quatro policiais envolvidos nem precisaram prestar depoimento ao delegado Gustavo Mendes Ribeiro — foram ouvidos “informalmente” e, portanto, não estão citados nominalmente. A ocorrência, registrada como “morte a esclarecer, sem indício de crime”, fala em “crime de resistência” por parte de Genivaldo, “desobediência às ordens” e necessidade de “algemação para resguardar a integridade física dos policiais envolvidos”. Outro documento, um boletim interno da PRF divulgado pelo Intercept Brasil, com o depoimento e a identidade dos quatro agentes, atribui a morte do abordado a “uma fatalidade desvinculada da ação policial legítima” e “mal súbito”.

O Brasil está reduzido a picos de indignação, em intervalos cada vez menores. Está difícil respirar diante da sucessão de barbáries nacionais. Mas proclamar indignação a peito aberto, mesmo com sinceridade e arrojo, é fácil, quase uma desculpa. Difícil e trabalhoso é o caminho do combate diário por algum sentido coletivo de humanidade no Brasil bolsonarizado. Sem jamais esquecer o que este governo e seus acólitos nos fazem sentir.

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