É nas palavras que a poesia vai buscar sua força e poder. Sugere ainda o poeta: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra.”
Mas jornal se faz com fatos. E eles se distribuem por todos os assuntos do mundo e do nosso tempo. Vão das dificuldades geradas pelo preço de combustíveis e protestos dos caminhoneiros à festa do casamento real em Windsor. Da revelação de novas frentes de corrupção no INSS ou na merenda escolar à escalada irrefreável da violência — da Rocinha à Cidade Universitária, da execução de Marielle Franco ao bebê baleado no colo da mãe. Fatos que parecem isolados se arrumam em constelações que lhes dão novos significados. Passam da pré-campanha eleitoral e das idas e vindas de recursos e embargos nos tribunais à divulgação dos mais recentes dados numéricos. Volta e meia, nesse processo, exigem palavras novas.
E elas surgem. Às vezes, em modismos artificiais, “lacrando” agora e destinados a durar pouco. Outras, na rica e original criação popular de potência duradoura. Os meios acadêmicos volta e meia trazem ou tentam impor artificialismos como “empoderamento” — criticado por tantos ouvidos sensíveis e já acusado de ser um “embutido” vocabular ou perversão linguística.
Estes últimos dias nos brindaram com duas contribuições interessantes nesse terreno de reapropriação léxica. Novas faces secretas reveladas sob a face neutra de que falava o poeta, de vocábulos “sós e mudos/ em estado de dicionário.”
Outra boa palavra surgida agora, a fazer pensar, brotou na cobertura do casamento na família real britânica. A noiva não se contenta em ser classificada como afrodescendente ou negra, como aconteceu com Barack Obama ao assumir a Presidência americana há alguns anos — sempre a inutilmente tentar lembrar que sua mãe era branca e seu pai, africano. Mezzo a mezzo... A nova duquesa de Sussex, intensamente ciente de cada indício simbólico nos mínimos detalhes da cerimônia, faz questão de se identificar como “birracial”, assumindo a mistura afro-caucasiana. No Brasil, talvez “multirracial” seja uma palavra mais verdadeira para nos descrever, ao incorporar indígenas — sem mistificação, como ainda Drummond aconselhava a recebermos as ordens da vida.
Já abandonamos o rico termo “favela” por “comunidade”, palavra que acentua laços importantes e força coletiva, mas traz perdas conceituais, ao relegar ao esquecimento uma série de conquistas culturais e um tecido histórico substancial, em prol de terminologia mais abstrata, mais ligada a uma classificação de capilaridade social americana. Já estamos fazendo campanhas para substituir a palavra “escravo” por “escravizado”, como se o número maior de sílabas e o aspecto de particípio passado, ao se afastar do substantivo concreto, mudasse o horror, o sofrimento e a vergonha do sistema escravocrata que nos fez como país e a que foram submetidos povos i
Pode parecer uma bobagem, mas acho que, se conseguirmos nos pensar como birraciais e multirraciais, estaremos mais próximos de ver quem somos e entender o imenso valor que tem essa identidade, os caminhos que ela pode nos abrir em meio às dobras do racismo persistente. Mais uma vez, com Drummond, podemos constatar que há calma e frescura na superfície intacta das palavras. “Com seu poder de palavra/ e seu poder de silêncio”.
Ana Maria Machado
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