Mas e se os cidadãos já não confiarem no “contrato social” das sociedades modernas? Se uma parte crescente da população entender que o Estado não zela pelos seus interesses?
A crise das sociedades democráticas ocidentais é exacerbada pelo algoritmo, que fomenta a polarização e impede o diálogo. Mas por que motivo discursos extremistas, violentos e desumanos apelam a tantos?
O filosofo Michael Sandel, no livro A Tirania do Mérito, procura encontrar a resposta. Embora a sua análise se foque na sociedade americana, o seu pensamento é relevante para as sociedades ocidentais em geral e, sobretudo, para os desafios que ora se colocam com o advento da Inteligência Artificial.
A promessa de que a riqueza gerada pela globalização permitiria, a todos, maior conforto económico não se cumpriu. Em quatro décadas, a China elevou da pobreza 800 milhões de pessoas, mas nos EUA a riqueza gerada com a globalização foi capturada por apenas 20% da população. Os salários mantiveram-se estagnados e, em 2020, o Departamento de Estatísticas dos EUA divulgou um estudo demonstrando que a desigualdade atingira o nível mais elevado em cinco décadas. À desigualdade social soma-se a arrogância dos vencedores. O discurso dominante é de que quem venceu o fez pelo seu mérito exclusivo. Que tudo deve à sua inteligência e ao seu esforço e, como tal, os seus rendimentos não só são merecidos, mas justos. No entanto, tal implica também afirmar que os outros falharam por sua única e exclusiva responsabilidade, porque não estudaram, não trabalharam. Às agruras das dificuldades económicas alia-se a humilhação. Naturalmente, este é um discurso perverso, não nascemos todos com os mesmos dons, com famílias idênticas e oportunidades iguais. Mas não é somente o facto de, na corrida da vida, não partirmos todos da mesma linha e de no percurso termos apoios distintos, é também o facto de que a sociedade, em cada momento, valoriza talentos muito diferentes. Finalmente, e provavelmente mais relevante para a polarização atual, a sociedade ocidental faz coincidir o contributo de cada um para o bem comum com o valor da remuneração auferida, numa perversão social que ficou a nu na pandemia de Covid-19. Os denominados “trabalhadores essenciais” eram aqueles que desempenham as funções mais mal pagas – quem recolhe o lixo, colhe a fruta, cuida de idosos…
O trabalho não é apenas um meio para a obtenção de um rendimento. Não somos indiferentes à estima e ao respeito que geramos. Numa sociedade desigual que desvaloriza o contributo de tantos, começa-se a adivinhar porque o discurso contra os “estrangeiros” – que afirmam vir “usurpar” trabalhos e rendimentos – encontra ouvintes, e porque se afirmam contra “elites”, “privilegiados”, “políticos do sistema”.
Se este foi o status que resultou da globalização, como será quando o “estrangeiro” for um exército de agentes artificiais, que nunca dormem e tudo sabem? Quando a riqueza se concentrar numa clique ainda mais reduzida de donos de Big Tech e o trabalho cognitivo diminuir exponencialmente? Devemos a nós e às próximas gerações um debate sobre que sociedade e contrato social desejamos. Tal envolve refletir em alternativas à tributação do trabalho, capital e heranças. Reforçar a discussão destes temas na escola, na disciplina de Filosofia ou, para os mais jovens, Ética, e regular a introdução de sistemas de Inteligência Artificial na economia.

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