domingo, 30 de outubro de 2016

Prisão política

É possível ler a cidade. Há um código próprio, repertório, sintaxe e semântica. A legibilidade da cidade é um saber consolidado na teoria urbana desde final do século XIX, quando buscavam-se soluções que permitissem a melhoria na sua apreciação estética: o embelezamento urbano. Mas é a partir dos anos 60, principalmente graças ao trabalho de Kevin Lynch e seu livro “A imagem da cidade”, que se amplia a compreensão de como o resultado formal do território fornece estímulos para nossos sentidos e cognição. A sucessão dos nossos deslocamentos físicos pela cidade, e no tempo, permitiriam a constituição de uma imagem. Consequentemente, também, uma possível compreensão, uma percepção emocional ou uma memória surgiriam. Essas sensibilizações seriam, portanto, individuais e compartilhadas.

Como disse antes, esse conhecimento qualifica-se nos anos 60, e isso quer dizer que, tanto era contrarresposta ao vigente funcionalismo do planejamento urbano modernista, como também inseria-se numa conjuntura cultural muito fértil, do “paz e amor” ao desenvolvimento dos circuitos integrados que originariam os chips que controlam tudo agora.

Estranhamente, hoje, falar sobre a forma da cidade, tão absortos que estamos com economia, política, arte, meio ambiente, os importantíssimos virais das redes sociais, e crises sem fim, converte-te num “hippie” deslocado em um mundo apressado e aborrecido. Mas trata-se de tema essencial, pois a urbanização ocorre apesar do planejamento urbano.

Garotinha e sua boneca sentando nas ruínas de sua casa bombardeada em 1940 na cidade de Londres:
Como resultado de processos controláveis e imprevisíveis, concomitantes, randômicos, urge mais corrigir e aperfeiçoar a urbanização do que tentar dominá-la. Preparar os lugares para serem mais humanos, inclusivos, acessíveis e ordenados é uma emergência. Necessitamos de cidades que consigamos ler para nos compreender. Isso não significa pegar a direção certa para um determinado destino, mas fazer do nosso destino, juntos na cidade, uma maneira de aperfeiçoamento, individual e coletivo. Pois é por isso que amamos as cidades e as buscamos, pois são o ambiente “natural" da nossa espécie.

Fazemos a forma da cidade coletivamente, mas ela também nos forma. Seu desenho tem impacto na qualidade de vida, libertando ou condenando-nos. Não à morte, mas a uma vida sem sonho, sem prosperidade, sem riquezas materiais e simbólicas. Aloisio Magalhães, grande designer e pensador, a quem sempre recorro em preces racionais, dizia: “Será que a nação brasileira pretende desenvolver-se no sentido de se tornar uma nação rica, uma nação forte, poderosa, porém uma nação sem caráter?” Com tantos centros históricos vazios e patrimônios culturais arruinados, com tantas periferias sem dignidade, temo que estejamos embevecidos, ou pior, que as próprias práticas políticas alimentem-se dessas formas urbanas desumanas.

A forma da cidade é também resultado do acúmulo politico. No Brasil é o produto imoral da ausência total de políticas habitacionais. Fechem o Ministério das Cidades, pois não serve pra nada! Seria uma boa economia. Por que os juízes não cobram a aplicação dos preceitos constitucionais na organização das cidades? Ou encaramos a agenda urbana ou continuaremos a reproduzir prisões políticas. Promete-se muito o que cada lugar da cidade quer ouvir, mas não temos evidências concretas que garantam melhorias urbanas.

Hoje é dia de eleição dentro das novas regras. Ótimo que se afastou o dinheiro de empresas, contudo a redução do tempo das campanhas é uma ameaça à qualidade da democracia. Já não há mais festa nem alegria no dia do voto. O exercício político da cidadania transforma-se em tarefa enfadonha. Deveríamos ampliar drasticamente o tempo das campanhas eleitorais de modo que se possa conhecer profundamente os candidatos. O que realizaram, seus planos, metas, números, fatos e evidências. Tão pouco a imprensa tem oportunidade para escrutiná-los revelando, com qualidade, pontos fracos e fortes.

Quatro anos são 1.460 dias, e será neste tempo que as cidades poderão melhorar ou não. A campanha eleitoral tem apenas 45 dias. É somente 3,08 % do tempo do mandato! É um equívoco matemático! É uma chave de cadeia condenando os brasileiros a cidades ineficientes, ruins, e indignas. Melhor lidar com candidatos por seis meses que com péssimos gestores municipais por quatro anos. Esse sistema é uma prisão política, condenando-nos a repetitivas formas urbanas desumanas. Precisamos de seis meses para conhecer e escolher prefeitos competentes, pois o brasileiro está preso em cidades que não consegue compreender e o político incapaz está solto por aí.

Washington Fajardo

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