Era o último que restou da tribo. Apenas era um curumim quando viu o horror querendo arrancar seus olhos. Escondido atrás do jequitibá frondoso, escutava os gritos, os corpos abatidos com a saraivada de bala, a taba queimada. O sangue empapou o chão, correu no rio a mancha que deságua na alma. O que fez seu povo para merecer o extermínio? Pergunta que não tinha resposta apesar de ter visto a barbárie que fizeram com a sua gente.
Dormiu em cima de pé de pau para que não fosse comido pela onça. De dia não sabia que direção tomava. Comia inseto e bebia água do riacho com a folha larga da árvore grande. O que seria dele agora, sozinho no meio da mata? Até que duas mãos o prenderam. O homem de rosto manso sorriu para ele. Alisou seus cabelos finos. Apontou para o seu coração, depois para o dele, como se dissesse, o meu é igual ao seu, não tenha medo, curumim, vou tomar conta de você. Deu-lhe biscoito, um pedaço de carne charqueada, uma xícara de café, bebida que ele nunca tinha tomado.
Foi morar com o homem na cidade, entrou na escola, aprendeu a ler e a escrever. Quando ficou rapaz, disse ao homem, o dono de uma roça de cereais perto do local onde vivia a sua tribo, que queria ser motorista. Fez o curso para conseguir o que desejava, foi dado como apto para se submeter às provas para motorista no departamento de trânsito local. Conseguiu o que queria na prova final, estava habilitado para ser motorista de veículo pesado.
Não demorou, teve a carteira assinada como motorista de ônibus da Companhia de Viação Sul Baiano. Rolava pelas estradas do território onde cabiam mais de cem municípios. De vez em quando olhava pela janela do ônibus aquele território coberto de matas, roças espalhadas onde os moradores de umas não sabiam das outras, de tão distantes que estavam.
E dizer que todas aquelas terras pertenceram aos seus antepassados. Justamente onde estava a maloca de sua tribo, depois que tudo ficou arrasado, ergueram barracões como parte do plano para desmatar a mata e vender a madeira. O lugar tornou-se logo um entreposto de negócios para venda de terras, artigos de campo e cidade no armazém.
Assim, por ladeiras e aclives do terreno, foi surgindo o vilarejo de topografia acidentada. Todas as ladeiras convergiam para o centro lá embaixo, onde ficava a única parte plana. Quando o lugarejo se tornou cidade foi batizado com o nome de Camacan. Por quê? Nada ali existia que registrasse a passagem de um povo que vivia em paz com a natureza. Para que ficasse nele batendo e voltando a lembrança de uma trágica emboscada?
Depois que passou a ser motorista da empresa de transporte de passageiro teve que morar em Camacan. Às vezes sentia que um pássaro distante cantava no peito a fuga do vento sem rumo certo, o horror do sol vendo as águas que afogavam os nativos na mancha enorme formada com a vergonha.
Nunca conseguiu se libertar da lembrança que queria arrastá-lo para a escuridão do pior abismo. Quando percorria a pé estas ladeiras, onde antes estava a mata intacta, a gente de sua tribo morava, na parte baixa, atravessava-lhe a flecha quebrada, dispersa nas cores, cheiros e sentidos de todas as manhãs. Zunia a bala que baniu da taba em dó e lágrima, até o último gemido, aquelas vozes na dança.
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