terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Jabor, o mentiroso Salles e o longo passado pela frente

Arnaldo Jabor morreu, aos 81 anos, depois de passar a vida querendo assistir ao nascimento de um novo Brasil. Infelizmente, é como morreremos todos nós que passamos a maior parte do tempo denunciando, esbravejando, analisando, escrevendo e falando sobre este triste país, de uma perspectiva que não compactua com a burrice, a ignorância, a desonestidade, inclusive intelectual, o patrimonialismo, a vulgaridade e a caipirice. Num dos seus comentários no Jornal da Globo, em outubro do ano passado, ao comentar sobre a CPI da Covid, Arnaldo Jabor (foto) afirmou que, depois de tudo o que foi revelado, “se a velha política prevalecer, podemos sair da barbárie para a decadência, sem conhecer a civilização. Pois como sentenciou Millôr Fernandes uma vez: o Brasil tem um longo passado pela frente“. Pois é, a velha política prevaleceu e continuará prevalecendo.

O longo passado pela frente se desenrola todos os dias a trabalhadores e pequenos e médios empresários da área produtiva, às voltas com cidades precárias e serviços essenciais abaixo da crítica, falta de oportunidades, impostos altos, criminalidade, corrupção e ganhos obscenos de um mercado financeiro que só suga as energias de um país exangue, mas acha que está fazendo um bem danado à nação. Desenrola-se, e enrola, também por meio da hipocrisia, da demagogia e das mentiras deslavadas ditas nas diferentes esferas do poder ou nas suas proximidades.


E é assim que, no dia em que morreu Arnaldo Jabor, o idiota aqui, o palhaço aqui, vê-se obrigado a falar de Ricardo Salles, o ex-ministro da Destruição do Meio Ambiente. Esse senhor foi ao Twitter dizer que foi Jair Bolsonaro quem convenceu Vladimir Putin a desistir da invasão da Ucrânia. Como se não bastasse, Ricardo Salles ainda publicou uma montagem de uma capa da revista Time, com a foto do presidente brasileiro e os seguintes dizeres: “Prêmio Nobel da Paz 2022. Bolsonaro, o homem que poderá definir o futuro do planeta. Com viagem à Rússia agendada, o Brasil tem papel fundamental na crise entre Rússia e Ucrânia”. Além de publicar a montagem, o ex-ministro da Destruição do Meio Ambiente comentou “Parabéns, presidente!”. Mais: Ricardo Salles publicou uma montagem com o logo da CNN, para dizer que Jair Bolsonaro evitou “a Terceira Guerra Mundial” — e a emissora viu-se obrigada a desmentir o absurdo evidente. Meme, uma ova. Tudo foi feito para que a safadeza fosse replicada pelo gado e lograsse os desavisados, que não são poucos.

A enormidade está muito além da “pós-verdade” ou qualquer outro eufemismo que se possa usar em relação ao que não passa de mentira, enganação, conto do vigário, embuste, gazopa, trapaça. É pura cara de pau. Jair Bolsonaro foi à Rússia porque está isolado no cenário internacional e, por isso, prestou-se a fazer jogo de Vladimir Putin, sem medir as consequências do seu ato e muito menos demonstrar qualquer solidariedade real em relação à Ucrânia, como escrevi ontem. Se Vladimir Putin desistiu mesmo de cometer a agressão ao país vizinho, e não é que o seu recuo esteja garantido, isso se deve à atuação intensa da diplomacia americana e europeia, do receio das consequências para a economia do país e da falta de apoio da população russa, que não foi suficientemente enganada pela historieta de que é a Ucrânia que representa uma ameaça.

Como é que pode um ex-ministro ser tão mentiroso, tão irresponsável, e espalhar fake news desse jeito? E não me venham dizer que essa patranha é liberdade de expressão. Porcaria nenhuma. Respeitem os meus 60 anos, por favor, a maior parte deles desperdiçados defendendo a liberdade de expressão e tomando pancada no lombo por causa dessa escolha pessoal, e pancada de verdade, não cancelamento em Twitter. Ricardo Salles não difere dos demais próceres bolsonaristas — os filhos do presidente, principalmente–, que espalham mentiras cabeludas o tempo inteiro. Mas o idiota aqui, o palhaço aqui, ainda se espanta quando se depara com uma barbaridade dessas, vinda de quem foi autoridade até ontem, e autoridade com interlocução internacional.

Não há conexão entre o bolsonarismo e a realidade, entre o bolsonarismo e a honestidade, o que não é particularidade, infelizmente, mas outro sintoma de que não há vasos comunicantes entre o Brasil e a civilização. Passaremos da barbárie para a decadência, tendo um logo passado pela frente. Descanse em paz, Jabor. Um dia a gente também chega lá.

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