sábado, 15 de setembro de 2018

O lulismo tardio é um caudilhismo singular, com traços milenaristas

“Hoje estou transmitindo a você a enorme responsabilidade de retomar o processo de transformação do Brasil, em benefício do povo”. A carta de Lula foi publicada no site do PT sob uma foto na qual ele aparece junto com Haddad.

À primeira vista, texto e imagem dizem a mesma coisa: a prosa inconfundível do caudilho que sagra um sucessor. Uma segunda leitura evidencia que, no fundo, escorrem em rumos opostos. A foto organiza-se no registro da seta do tempo: o tempo linear, que se desenrola no sentido do futuro. O texto, pelo contrário, organiza-se no registro do tempo cíclico: o tempo circular, de eterno retorno. A divergência entre uma e outro reflete as dificuldades da invenção do que se pode chamar lulismo tardio.

Na foto, Lula aponta o indicador esquerdo em direção a um ponto no infinito, para o qual Haddad olha fixamente. Seta do tempo: o mestre indica o lugar exato do futuro a seu discípulo, herdeiro e sucessor. A ideia da transmissão está condensada aí. É como se um dom pessoal se estendesse de um corpo a outro, como nas sucessões dinásticas do passado, de tal modo que o receptor se converte no corpo substituto do doador.


Nisso, não há genuína novidade. A carta, porém, não ordena que Haddad conduza o povo ao futuro, mas ao passado. “Você vai me representar nessa caminhada de volta à Presidência da República, para realizar novamente o governo do povo e da esperança”. Ciclo do tempo: o mestre faz do discípulo um instrumento de restauração de um passado glorioso, uma era perdida de ouro, leite e mel. Haddad não é, neste registro, nem mesmo um sucessor. É, única e exclusivamente, a máscara do próprio Lula.

“Tudo que lhe peço, querido amigo, é que cuide com muito carinho das pessoas, como eu gostaria de estar cuidando”. Abaixo da gosma paternalista, repousa a mensagem que, de fato, importa. Haddad deve mimetizar Lula —ou, melhor ainda, ser Lula. Jamais, na nossa história política, nem mes mo no caso de Dilma, a personalidade de um candidato foi tão completamente anulada. O paralelo possível, muito imperfeito, é com o peronista Héctor Cámpora. Indicado por Perón como seu “delegado pessoal” para representá-lo nas eleições de março de 1973, Cámpora presidiu a Argentina por escassos meses, até renunciar em julho, propiciando novas eleições e o retorno do caudilho ao poder.

O Lula oposicionista de 2002 prometia o novo, o futuro. O poderoso Lula de 2010, representado por Dilma, uma sucessora escolhida para ser efêmera, prometia o presente perpétuo. O Lula tardio de 2018, criminalmente condenado e eleitoralmente vetado, mergulha no lago dos mitos para prometer a reconstituição do tempo anterior à catástrofe.

Na “carta de transmissão”, o lulismo reescreve a história recente, produzindo um conto infantil. Nessa narrativa, uma era de ouro (o governo Lula) é interrompida por um evento cataclísmico (o impeachment), que provoca a descida ao abismo (o governo Temer). O voto em Haddad propiciaria a redenção —isto é, a restauração de um mundo perdido.

Na narrativa do lulismo tardio, um passe de mágica transforma a história em conto infantil: a abolição dos seis anos dilmistas. A “carta de transmissão” formulada como roteiro sintético de campanha, não menciona o nome da sucessora de Lula. Sem ela, eliminam-se os nexos que ligam a bolha de fartura (governo Lula) ao desastre fiscal (governo Dilma) e à depressão econômica (governo Temer). Por essa via, instaura-se a gramática do discurso mítico: a seta do tempo dá lugar ao ciclo do tempo.

O lulismo tardio é um caudilhismo singular, com traços milenaristas. “Que Deus te ilumine nessa caminhada”: orientado pelo indicador de Lula, iluminado pelo holofote divino, Haddad mostrará ao povo o caminho do retorno. O partido que nasceu cultuando a política depende, hoje, da negação sistemática do discurso político.

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