sábado, 15 de setembro de 2018

Indignação diante das cinzas do Museu Nacional

Jamais se recupera plenamente um museu, porque eles sempre guardam peças únicas que expressam sua singularidade na natureza ou história. Assim, não interessa que haja doação para o Museu Nacional de outro sarcófago egípcio, porque Sha-amun-en-su está perdida para sempre, e não cabe substituição por uma réplica criada por artista plástico. Além disso, paredes, escadas, pisos e telhados da construção bicentenária talvez sejam refeitos, mas serão imitações de materiais do século XIX para edificação de palácios. Houve ainda destruição de exemplares de animais extintos, o que prejudicará elaboração de teorias sobre a evolução até aos seres vivos da atualidade. Assim, as cinzas do precioso acervo constituem um dano sem precedentes para a elaboração do conhecimento e o registro da produção humana.

O Brasil deve, portanto, penitenciar-se diante do mundo, porque demonstrou, no dia 2 de setembro de 2018, descaso pelo seu principal patrimônio histórico-científico criado por dom João VI, há 200 anos. Isso vem numa sequência de perdas irreparáveis, e, mesmo assim, muitos outros tesouros continuam padecendo de abandono e depredação, pois prevalecem a incúria administrativa e o desrespeito da população pelos bens da comunidade.


O Museu Nacional havia celebrado o bicentenário no dia 6.6.2018, sem a presença das autoridades maiores da República, apesar de convidadas. Tinha surgido como Museu Real, em 1818, no Campo de Santana, sendo transferido para o antigo palácio imperial, na Quinta da Boa Vista, em 1892. Desde o início, dedicou-se à produção de conhecimento, abrigando, nas últimas décadas, cursos de mestrado e doutorado em antropologia, arqueologia, botânica e zoologia, além de especializações em linguística e geologia. Ele atraiu sempre importantes nomes da ciência mundial, como visitantes e mesmo pesquisadores por vários anos.

A destruição desse ambiente de trabalho é especialmente dolorosa para a antropologia, porque consumiu a produção original de figuras ilustres desde Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), Heloísa Alberto Torres (1895-1977) e Luís de Castro Faria (1913-2004), que trabalharam ali por muitos anos, formando centenas de profissionais e traçando rigorosos métodos de investigação em diferentes temas sobre as populações indígenas e os brasileiros.

Houve gestos heroicos de pesquisadores que arrombaram portas para resgatar alguns tesouros, arriscando a própria vida. Criterioso rescaldo pode trazer de volta instrumentos, fósseis e minerais de inestimável valor, mas muitos estudantes e professores perderam, certamente, copiões de teses ou textos prontos para o prelo, sem exemplar em sua casa. Como retomar a normalidade? Como reconstruir tudo em outro ambiente?

Mesmo assim, o país não se emenda. Estão surgindo medidas para conferir a segurança de outros tesouros nacionais, mas o melhor acervo de história natural e de antropologia da América Latina está perdido para sempre.

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