terça-feira, 8 de outubro de 2024

Mané todos os bichos

Em menos de uma década, o Brasil sofreu (e tem sofrido) o desafio de três pandemias: a COVID-19; os devastadores eventos climáticos – secas, incêndios e enchentes; e agora, a pandemia dos jogos de azar com a marca ERIA (Esperteza Real e Inteligência Artificial).

O primeiro desafio esbarrou no negacionismo estúpido das autoridades, porém ficou a lição para o mundo inteiro que ciência, prevenção e cooperação global são as armas para enfrentar catástrofes com dimensão universal.

O segundo desafio é a chegada da tragédia climática, com tamanho e data anunciada, a exigir redobrado esforço para que a emergência não nos imponha o ritual taoísta dos “Cachorros de Palha” que deu nome à obra clássica ao filósofo britânico John Gray. Nesta luta contra o tempo, o Brasil dispõe do valor estratégico de seus recursos naturais e, a despeito do retrocesso na política e na gestão, herdado do governo anterior, terá um papel decisivo no equacionamento da questão ambiental observado, espero, o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas.

O terceiro desafio: os jogos de azar viraram um surto pandêmico. É o assunto do momento. Há os que defendem a prática como entretenimento, aposta, considerando uma disputa em que o aleatório é o argumento da derrota ou da vitória dos disputantes. De outra parte, há os ferrenhos adversários brandindo evidências dos malefícios que os jogos de azar podem causar aos seus adeptos, arruinando pessoas, famílias e a comunidade.

No entanto, a jogatina tem origens remotas e marcam passagens em inúmeras civilizações. A etimologia árabe – al-azar – significa “dado” e, daí, advêm as múltiplas formas do jogo, inclusive, as definições de estratégias para responder com probabilidades aos “acasos”, abrigadas nas mais simples às mais sofisticadas infraestruturas para atender à crescente clientela.


Atualmente, os jogos envolvem fortunas e são considerados um vetor para o desenvolvimento da indústria hoteleira e do turismo. No seu entorno, “negócios paralelos” vicejam sobre a linha tênue da legalidade/crime, diversão/vício o que tem ocupado o noticiário, as redes sociais e um caloroso debate político sobre a regulamentação dos jogos de azar.

Com a votação e aprovação do PL 2234/2022 (por 14 a 12 votos) na Comissão de Constituição e Justiça, o assunto irá à deliberação do Plenário tão logo seja pautado pelo Presidente do Senado. O texto legaliza e regulamenta o jogo do bicho, o funcionamento de casa do bingo, jogos de cassino, corridas de cavalo, enfim, as normas chegam num momento sensível e relevante.

Sensível porque, na origem, está a Lei 3688 de 1941 (Lei das Contravenções Penais) que punia o jogo como uma atividade “degradante”; relevante porque suscita um sério debate sobre as “Bets”, que, ao invadir o mundo digital, empurram as pessoas para a compulsão do jogo: a ludopatia. Vale dizer, as pessoas carregam na mão uma casa de aposta e uma horda de “tigrinhos” que levaram, em agosto, três bilhões de reais dos beneficiários do bolsa família e mais de vinte bilhões de reais do consumidor brasileiro: tiram do bolso dos pobres ou viciados para encher o bolso da corrupção e do crime organizado.

É fundamental uma regulação inteligente e eficaz. Câmara Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro” qualificava o jogo do bicho como um “vício irresistível” e acrescentava que a “repressão policial” apenas multiplicava a clandestinidade. E olhe que sou do tempo em que o jogo do bicho era tolerado e todo mundo, diariamente, fazia uma “fezinha”, modo delivery, em Vitória de Santo Antão.

Na hora do almoço, o cambista, forte, pele avermelhada atendia pelo apelido de “raça boa”e, de casa em casa, recebia as “pules” (o conjunto de apostas); registrava na caderneta com o papel carbono. Confiança era tudo: acertou, recebia.

Freguês fiel era o Seu Manoel, homem de poucas palavras, funcionário aposentado da prefeitura, respeitoso e carrancudo. Quase todo mundo na rua já havia ganho no jogo, pelo menos, no “grupo” ou na dezena. Seu Manoel, só gastava. Um dia com raro e leve sorriso de deboche, comemorava a notícia de que tinha ganho no grupo pela segunda vez. “Raça Boa” não segurou o segredo.

O jogo foi criado em 1892 para estimular a frequência do Jardim Zoológico de propriedade do barão de Drummond: cada visitante recebia um bilhete de entrada com a figura de um dos 25 animais, encoberto, e revelado no fim do dia o que valia um prêmio em dinheiro para o portador do bilhete. Foi um sucesso. Associados a um número, os animais compuseram séries numéricas, o jogo pegou e passou a ser praticado fora do zoológico. Deu samba!

Desde o Império, os jogos de azar eram proibidos no Brasil. Aqui, porém, a contravenção venceu. Segundo alguns intérpretes da alma brasileira, decorria da crença esperta de ganhar a vida sem trabalhar. Seu Manoel, no entanto, carregava a detestável pecha de azarado. E combinado o sigilo com o cambista, jogou um cruzeiro nos 25 bichos (probabilidade zero de não ser premiado), gastou 25 cruzeiros e ganhou 20 que era a recompensa pelo “acerto” no grupo. Prejuízo: 5 cruzeiros. Mas “ganhou”. E de quebra ganhou também o apelido dos vizinhos: “Mané todos os bichos”. “Raça Boa” desapareceu. Só retomou à rotina quando soube que seu “Mané” foi morar longe da rua.

Todo cuidado é pouco na regulamentação da atraente atividade. O Brasil adora a jogatina e, para cada cem brasileiros nascidos, segundo dados oficiais, 10 têm juízo, 10 são “espertos”, oitenta são otários.

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