O que mudou?
Ao analisar o panorama cultural da mais longa democracia do mundo — os Estados Unidos —, Robert Hughes detectou em seu livro “Cultura da reclamação” os sinais de um país dividido, incapaz de lidar com suas verdadeiras necessidades. Pois os perigos previstos já aconteceram: a relação entre campanhas eleitorais e mídia televisiva, a herança puritana da direita, a queda do nível reflexivo, o elogio da superficialidade, a ignorância política das massas, a emergência do neomoralismo e a onda regressiva do politicamente correto, entre outros.
A verdade assustadora do mundo atual apareceu. Mas, afinal, o que mudou em nossas vidas?
Vamos lá.
Mudou a ideia de uma grande pátria americana organizando a sociedade como um parque temático, um supermercado ou uma Disneylandia — 11/9 e, agora, Trump abriram um buraco negro nos EUA; lá (e no mundo) acabaram a “finalidade”, o “projeto”, a busca de certezas, de “sentido”, a vontade de tudo explicar pela razão, o doce aroma do sucesso a qualquer preço, o “happy end”, o princípio, o meio e o fim, a vontade de esquecer a morte, por sua transformação em espetáculo; mudou a morte, que não está mais num leito burguês com extrema-unção e família chorando, a morte que já é um cachorro pelas ruas, atacando de repente; mudou a guerra, que antes era mundial em duas frentes e agora virou um arquipélago de tragédias disseminadas pelos continentes, mas também voltou a Guerra Fria com o psicopata Putin; mudou a compaixão, que hoje esbarra na pele de rinoceronte de nossa alma fria; mudaram nossos olhos, que ficaram mais duros na contemplação das desgraças, cresceu a religião e a fé, caíram a esperança e a caridade; mudou o sonho de “solução”, a ideia de “futuro redentor”, chegou o fim do “fim da História”; mudou o sonho detergente de uma vida asséptica, sem fraturas, a utopia do conforto total, da harmonia doce do lar, das pérolas faiscantes, a presteza dos serviçais silenciosos e humildes; mudaram os pecados veniais, as deliciosas perversões irresponsáveis, acabou a oportunista e enobrecedora contemplação da miséria “em compota” por militantes imaginários, pois a miséria chegou nas asas da estupidez religiosa; mudou a rebeldia, pois os marginais não são mais heróis — são uma cultura de ameaças —, acabou a esperança da revolução fácil, mágica, acabou a “boa consciência” de sermos confortavelmente “a favor do bem”, dos índios, das bichas perseguidas, dos excluídos, das baleias, acabaram as ideias “universais” — ficaram só o singular e o mundial —; mudou a inocência, que virou cumplicidade; mudou a mentira, que virou verdade; mudou a alegria, que virou ironia ou cinismo; mudou o sim e o não — tudo que é negado é real e vice-versa; mudou a esquerda, que virou direita — o pretexto “esquerda” virou uma máscara para o fascismo bolivariano na alma —, o surrealismo virou piada naturalista, o indivíduo indivisível deu lugar ao indivíduo esfacelado por bombas, coberto de pizzas sangrentas, acabou o “outro”, pois surgiu outro horrendo “outro”, sujo e mortífero, suicidando-se às gargalhadas; mudou também o difuso sentimento ocidental de superioridade, a aparente tolerância e a falsa generosidade, acabou o ser-para-si, o nada, o tempo para a frente, pois o terror nos mandou de volta para o ano 1.000; acabou a esperança de achar Deus entre as galáxias, pois Deus já está entre nós armado até os dentes, acabou a deliciosa sensação da fleuma, acabou a coolness, pois o homem-bomba desbancou o homem-cool; ficou mais evidente o desejo brutal dos egoístas, disfarçado de sorridente entusiasmo, ficamos mais conformistas e mais medrosos; acabou a democracia “de boca”, entrou em crise a sensação de luxo fabuloso, a ideia de beleza, até mesmo a elegantíssima vivência do desespero crítico na arte iluminista; acabaram a malaise abstrata, a náusea romântica, a delícia das grandes dores de amor, enquanto a arte se esvai, destruída pelos efeitos especiais; acabou a depressão culta que enobrece o sofredor inútil; acabaram os filmes-catástrofe que são mais suaves do que a realidade (aliás, o que era mesmo a tal da realidade?); acabou o amor romântico, ficou um amor de consumo, um amor de mercado, não temos mais músicas líricas, nem o lento perder-se dentro de “olhos de ressaca”, nem o formicida com guaraná; só restaram as fortes emoções, as lágrimas, os motéis, as perdas, os retornos, os desertos, a chuva, o sol, o nada, pois o amor hoje é o cultivo da “intensidade” contra a “eternidade” e porque temos medo de nos perder no amor e fracassar na produção; mas ainda temos a nostalgia por alguma coisa que pode voltar atrás. Não volta. Nada volta atrás. A infelicidade de hoje é dissimulada pela alegria obrigatória — uma “fast food” da alma — pois ser deprimido não é mais “comercial”, nossos corações clamam por socorro de Bruce Willis, Van Damme, Super-Homem, todos desempregados, vagando pelas ruas.
Mudou o tempo — surgiu o enorme “presente” — tudo é aqui e agora; o passado virou depreciação. Os meios de comunicação eram extensões de nossos braços, olhos e ouvidos — hoje, nós é que somos extensões das coisas. Com o fim do sujeito, seremos todos objetos. Finalmente, a esperança será substituída pelo fatalismo islâmico. Só os homens-bomba vão gozar de livre arbítrio: por uma fração de segundo serão livres, leves e soltos.Arnaldo Jabor
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