terça-feira, 21 de junho de 2016

Ousar e vencer

Passei uma semana nos lugares onde nasci e cresci. Dormi em camas antigas que me acolheram em meus primeiros dias de vidas e nos gélidos invernos da década de 50. A primeira neve, os banhos em “vasca” (banheira) de carvalho, os sufocos de uma época que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Essa casa era de meu bisavô. Mesmos armários, mesmas paredes, nunca se renovou. Erguida com pedras, entre 1906 e 1908, que foram trazidas de carroça do vizinho rio Taro.

Meu bisavô tinha uma frota movida por cavalos que atendia a coleta de trigo e a distribuição de farinha e que, na volta, trazia pedras. Decidiu construir essa casa e abandonar a residência dentro do moinho em que morava com a família ocupando um andar acima dos escritórios.

Em seguida, meu avô Francesco herdou a casa, sendo o mais velho dos oito filhos de Vincenzo. Por herança coube a meu pai, um dos seis filhos de Francesco com Maddalena Lualdi, uma linda jovem de uma tradicional família de Milão. “Lena” faleceu nessa casa em 15 de abril de 1910 ao dar à luz, com apenas 26 anos, sua sexta criatura, Olga Medioli, que dela herdou os traços.

Os retratos de meus antepassados ainda estão nas paredes, algumas fotos ainda emolduradas e enfeitadas com trancinhas dos cabelos das personagens retratadas como era moda no início de 1900. Peças delicadas e lembranças que se desbotam com o tempo e na memória dos sucessores das gerações que se seguiram.

Minha mãe, com 93 anos, mais lúcida do que eu, ainda guarda centenas de histórias que com ela desaparecerão. Como os corpos daquelas figuras perderam vida, também as imagens ficarão sem lembranças que sobram em minha mãe. Dados anagráficos apenas e mais sonhos, guerras. Trajetórias que se escoaram e estão descendo, como um Titanic, às profundezas de um repositório perdido.

Van Gogh
Minha família sempre foi de “mugnai”, donos de moinhos de trigos. E, desde um tal de Domenico Medioli, está documentada nos arquivos da “paróquia”, em línguas que se alternaram como no “ducato” de Parma. Iniciaram-se em latim, por via do Vaticano controlador do patrimônio eclesiástico, e passaram para o francês, quando Napoleão conquistou o “ducato” e aí instalou sua esposa, Maria Luisa d’Áustria, sobrinha de Maria Antonieta, rainha da França. E aí perto da nossa casa construiu uma “Petit Versailles”, que usava de residência de verão, nos domínios do Ferlaro dos Príncipes Carrega.

Em Parma, Maria Luisa, deu à luz o único filho de Napoleão, Romulo Bonaparte, nascido com o título de rei da Itália, falecido ainda imberbe ao ser exilado num lúgubre castelo da Áustria.

O tempo corre, encobre com cortinas, sepulta. A 600 metros dessa casa, apareceram numa escavação restos de 5000 a.C. e uma estatueta de uma deusa que marcaria o início da religiosidade de um povo itálico não identificado e primitivo.

No cemitério da paróquia estão enterrados, numa capela que meu bisavó construiu, há mais de cem anos, dezenas de descendentes e mais ainda nas capelas que se seguiram para abrigar inúmeras proles que pararam de crescer e estão quase a se extinguir.

Minha mãe me pergunta: “Quem continuará a trocar as flores e limpar as capelas?” Naquelas lápides de mármore de Carrara, jazem os sonhos, as alegrias, os entusiasmos, e as decepções confessadas ou não. Lembranças em extinção.

Depois de Vincenzo, figura extraordinária, poucos foram aqueles que se jogaram em grandes desafios. Aí jazem mais vidas de quem procurou a paz e o anonimato.

Confesso o natural nó na garganta que me aperta passando pelo local. Provavelmente minha presença sacode algumas dessas almas, ainda inquietas, quando me defronto com o nome e a imagem delas: “... faça o que eu não fiz...”. Apague arrependimentos.

Meu bisavô Vincenzo foi uma figura corajosa que, em 1888, era dono de uma cadeia de sete moinhos tocados com as pás movidas pela água do mesmo canal. Construído em épocas imemoráveis, certamente com mais de mil anos, aproveitando o declive dos vales do rio Taro, onde toma as águas perenes do córrego Parma. E foi aí que ele decidiu montar uma usina hidrelétrica e introduzir na província de Parma a eletricidade que ainda não existia. Jornais da época reportam a façanha e as viagens de charrete, no verão de 1888, de multidões ansiosas para ver a lâmpada iluminando a noite. E foi lá também que tocou o primeiro telefone da região.

A ele também se deve a primeira fábrica de extrato de tomate, que deu partida ao modo de envasar esse fruto concentrado. E a região continua como polo de produção de alimentos concentrados em um centro tecnológico de industrialização.

No corredor da casa de pedra, no primeiro andar, tem uma foto de 1913, uma festa no pátio do moinho de Vicofertile que unia todos os filhos, netos e funcionários, alguns erguendo copos cheios de vinho que rolou abundantemente numa tarde de festiva de verão.

Meu pai aparece franzino, com 5 anos. Difícil, sem ajuda de minha mãe, reconhecer e lembrar os nomes daqueles meninos. Não há mais sobreviventes, e algumas famílias se extinguiram. Apenas minha mãe sabe detalhes e biografias, a última que guarda essa saga que ela lembra apenas nos aspectos positivos. A história ficou depurada.

De cada um sabe o nome, o cônjuge, os filhos, as cidades ou países onde foram morar. Canadá, Chile, Estados Unidos, França, sem contar o Brasil. Às vezes bate à porta dela alguém que, sem falar uma palavra do italiano, se diz descendente de Vincenzo e quer ver onde ele viveu, tirar cópia de fotos e quadros da família.

A memória de Vincenzo ainda resiste ao desgaste do tempo. Como diz seu nome, era um que sabia ousar e “vencer”, com o mérito de deixar ensinamentos, que espero que sigam com meus netos.

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