É imperativo perguntar, para evitar o risco das simplificações que podem servir para o pragmatismo de agora, mas cobrar um preço elevado depois: onde está o golpe? E quem são os golpeados neste país?
Sheila Cristina Nogueira da Silva chora a morte do filho Carlos Eduardo, 20 anos, com seu sangue no rosto, no dia 10 de junho, no Rio de Janeiro. PABLO JACOB |
Basta seguir o sangue. Basta seguir o rastro de indignidades dos que têm suas casas violadas por agentes da lei nas periferias, dos que têm seus lares destruídos pelas obras primeiro da Copa, depois das Olimpíadas, dos que têm suas vidas roubadas pelos grandes empreendimentos na Amazônia, dos que abarrotam as prisões por causa da sua cor, dos que têm menos tudo por causa de sua raça, dos que o Estado apenas finge ensinar em escolas caindo aos pedaços, negando-lhe todas as possibilidades, dos que são expulsos de suas terras ancestrais e empurrados para as favelas das grandes cidades, dos que têm seus cobertores arrancados no frio para não “refavelizar” o espaço público. Basta seguir os que morrem e os que são mortos para saber onde está o golpe e quem são os golpeados. Como nos lembrou Sheila da Silva, a pietà negra do Brasil, o sangue diz o que as palavras já não são capazes de dizer.
Esta crise não é apenas política e econômica. É uma crise de identidade – e é uma crise da palavra. São as palavras que nos arrancam da barbárie. Se as palavras não voltarem a encarnar, se as palavras não voltarem a dizer no Brasil, o passado não passará. E só nos restará pintar o rosto com sangue.
Eliane Brum, "O golpe e os golpeados"
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