O que se pretendia, na maioria dos lugares, era que elegêssemos pessoas para nos governar e esporadicamente renovássemos ou revogássemos seu contrato. Isso bastava. Não havia maneira prática de envolver todos, o tempo todo.
As atuais manchetes de Washington apregoam salvamentos financeiros, estímulos, carros velhos, Afeganistão-Paquistão, seguro-saúde. Mas é possível que historiadores futuros, olhando para o passado, se fixem num projeto menos ruidoso do presidente Barack Obama: a exploração de como o governo deve estar aberto a uma maior participação pública na era digital, de como fazer do autogoverno mais que uma metáfora.
Durante sua campanha, Obama disse que “somos aqueles por quem estivemos esperando”. Essa frase messiânica encerrava a promessa de um novo estilo de política nesta época de tweets e pokes. Mas isso era vago, um paradigma tratado casualmente em nossos drinques. Até aqui, o gosto tem sido amargo.
Agências federais foram orientadas a liberar online informações antes sigilosas; repórteres de publicações exclusivas da internet foram chamados a coletivas de imprensa; o novo portal Data.gov permite que cidadãos criem aplicativos para analisar dados do governo. Mas os esforços mais reveladores estão na crowdsourcing: a solicitação via internet aos cidadãos para que deem ideias políticas e a permissão para que votem nas propostas uns dos outros.
Durante a transição, a administração criou o Citizen’s Briefing Book (um resumo de sugestões dos cidadãos) online para as pessoas enviarem ideias ao presidente. “As mais bem classificadas chegarão ao topo e, após a posse, nós as imprimiremos e reuniremos numa pasta como as que o presidente recebe todos os dias de especialistas e consultores”, escreveu Valerie Jarrett, consultora de Obama, a correligionários.
Foram recebidas 44 mil propostas e 1,4 milhão de pessoas votaram nelas. Os resultados foram publicados discretamente, mas eram embaraçosos – não tanto para a administração quanto para nós, que estávamos esperando por eles.
Em meio a duas guerras e ao derretimento da economia, a ideia mais votada foi a legalização da maconha – proposta quase duas vezes mais popular que repelir os cortes de impostos de Bush para os ricos. A legalização do pôquer online despertou duas vezes mais interesse que uma rede Wi-Fi de alcance nacional. Revogar a isenção de impostos da Igreja da Cientologia recebeu três vezes mais votos que levantar fundos para o tratamento de câncer infantil
Uma vez no poder, a Casa Branca fez nova consulta via internet. Em março, seu Departamento de Política de Ciência e Tecnologia abrigou um esforço coletivo online sobre tornar o governo mais transparente. Chegaram boas ideias, mas um número espantoso delas não tinha a menor relação com transparência. Muitas eram ainda sobre a legalização da maconha. Travou-se também um debate furioso (e sem fundamento) sobre a autenticidade da certidão de nascimento de Obama.
Se a internet precisava de uma sacudida extra para cair do pedestal, esta foi dada pelo debate sobre o sistema de saúde. Do ponto de vista da administração, a web provou ser melhor em espalhar mentiras sobre “painéis da morte” que em divulgar a verdade, e mais eficaz em provocar brigas em câmaras municipais que em fomentar a discussão sem restrições que muitos imaginam ser o ponto alto da internet.
Há um vigoroso debate em curso sobre o que alguns chamam de Gov 2.0. Um campo vê na internet uma oportunidade sem precedente para trazer de volta a democracia direta no estilo ateniense. Essa visão foi capturada num recente documentário britânico, Us Now, que pinta um futuro no qual cada cidadão estará conectado ao Estado tão facilmente quanto ao Facebook, escolhendo políticas, questionando políticos, colaborando com vizinhos. “Será que podemos todos governar?”, pergunta o filme. (Evidentemente, o filme pode ser visto na web.)
As pessoas desse campo apontam para o auxílio que a tecnologia da informação prestou a movimentos populares, da Moldávia ao Irã. Citam a Índia, onde os eleitores agora podem acessar, via mensagem de texto, informações sobre os registros criminais de candidatos ao Parlamento, e a África, onde telefones celulares estão melhorando a fiscalização eleitoral. Assinalam a facilidade de repassar conhecimentos científicos e culturais a um público amplo. Observam como a internet, ao democratizar o acesso a fatos e números, encoraja tanto políticos como cidadãos a basearem suas decisões em mais que intuição.
Mas sua visão de democracia da internet é parte de uma evolução cultural maior rumo à expectativa de que sejamos consultados sobre tudo, o tempo todo. Cada vez mais, os melhores artigos para se ler são os mais enviados por e-mail, as músicas que merecem ser compradas são dos cantores que acabamos de eleger para o estrelato por mensagem de texto, o próximo livro a ler é aquele comprado por outras pessoas que compraram o mesmo livro que você, e a mídia, que antes noticiava para nós, agora publica tudo que pomos no Tweeter. Nessa nova era, nosso consentimento é colhido a cada poucos minutos, e não a cada poucos anos.
Um outro campo vê a internet de maneira menos rósea. Seus membros tendem a ser entusiastas da web e da participação cívica, mas são céticos sobre a internet como panaceia para a política. Temem que isso crie uma ilusão falsamente tranquilizadora de igualdade, transparência, universalidade.
“Vivemos numa era de experimentação democrática – tanto em nossas instituições oficiais como nas muitas maneiras informais de que o público é consultado”, escreve James Fishkin, cientista político de Stanford, em seu novo livro When the People Speak (Quando o Povo Fala). “Muitos métodos e tecnologias podem ser usados para dar voz à vontade pública. Mas alguns dão um quadro da opinião pública como se vista numa casa de espelhos.”
Uma vez que é tão fácil filtrar online o próprio ponto de vista, as opiniões extremadas dominam a discussão. Os moderados ficam sub-representados, de modo que os cidadãos que buscam um sistema de saúde melhor parecem menos numerosos que os fãs de pôquer. A imagem de abertura e igualdade da internet camufla suas desigualdades de raça, geografia e idade.
As mentiras se espalham como fogo na web. Eric Schmidt, presidente executivo do Google, advertiu em outubro passado que se os grandes veículos do jornalismo confiável morrerem, a internet se tornará uma “cloaca” de informações ruins. A Wikipedia pretende dar um toque de edição – lembram-se da edição? – em artigos sobre pessoas vivas.
O mais ameaçador talvez seja que a abertura da internet permite a grupos bem organizados simularem ter apoio para “capturar e personificar a voz pública”, como escreveu Fishkin numa troca de e-mails.
Não é possível voltar no tempo. Temos hoje mais opinião pública exercendo pressão na política do que nunca. A questão é como ela pode ser canalizada e filtrada para criar sociedades mais livres e bem-sucedidas, porque simplesmente colocar coisas online não é uma panaceia. “Neste momento, a discussão não é mais se a internet é importante e se vai se espalhar ainda mais”, disse Clay Shirky, teórico da internet e autor de Here Comes Everybody: The Power of Organizing Without Organizations (Aí vêm todos: o poder de organizar sem organizações). Ele acrescentou, numa entrevista telefônica: “Na verdade, ela é importante demais para ser deixada de lado nas questões constitucionais e de governança”.
Há uma busca pela metáfora correta. Qual é o novo papel do governo – uma plataforma? Uma máquina de vender na qual colocamos dinheiro para tirar serviços? Um facilitador? E qual é, de fato, o novo papel para nós – os que estão esperando?
Anand Giridharadas (Estado de S. Paulo, 19/09/2009)
Nenhum comentário:
Postar um comentário