Que contraste com as nossas malsinadas tradições políticas sul-americanas. Afinal, o que é um “golpe de Estado” senão uma sacanagem — o retorno violento de uma república à ordem aristocrática feita por uma corporação, partido e/ou família?
No Japão, o poder tem um lado sacrossanto avesso à malandragem política como um meio de boa vida. Tal simbolismo, certamente, inibe a proliferação do chamado “baixo clero”; esse resultado objetivo de uma tosca confusão quando se pensa que democracia é quantidade, e não qualidade, a qual depende de mérito, ética e impessoalidade.
No Japão, há uma aristocracia fixa e um regime eleitoral móvel. Mas não foram apagados os elementos tradicionais de controle do cargo público na figura do suicídio de honra — o seppuku (“cortar o ventre” em tradução literal) — quando uma figura pública malandramente abusa do seu cargo, que é "do público", e não "um cargo público" tal é concebido no Brasil.
Estive no Japão em 1981. Em Tóquio e Toyama, tomei parte de discussões sobre teatro e ritual. O professor Victor Witter Turner, um escocês radicado na Universidade de Chicago com quem tive uma grata afinidade intelectual, levou-me ao Oriente. Suas teorias conduziram-me também ao estudo do carnaval brasileiro, que investiguei como um “rito de passagem coletivo”, tentando tirá-lo do sonambulismo da brincadeira festiva inocente, para vê-lo como como um cerimonial com uma mensagem igualitária e paradoxal na qual a malandragem, a fantasia, a ostentação, a máscara, a inversão dos sexos e classes sociais e a música de duplo sentido relativizavam o comportamento reacionário, bem como a profunda e inconsciente hierarquia que governa a nossa vida diária.
Victor Turner renovou os estudos simbólicos. Tinha um coração tão grande que, não cabendo neste mundo, explodiu em Charlottesville, Virgínia, Estados Unidos, no dia 18 de dezembro de 1983. Por uma coincidência recorrente da minha vida, recebi a notícia depois assistir a um “Rei Lear”, de Sérgio Britto, um de seus dramas prediletos. Com sua morte, foi-se um renovador dos “teoremas de Arnold Van Gennep”, que, como resume Meyer Fortes, estabelecem: (a) os estágios críticos do ciclo de vida que começam no nascimento e seguem para a puberdade, o casamento e, finalmente, para a morte, são marcados por rituais de reconhecimento; (b) a entrada e saída desses estágios são sinalizadas em todas as sociedades, sejam “primitivas” ou “avançadas”; (c) esses ritos têm sempre três fases: separação, transição ou margem, e incorporação.
Os togados do Supremo Tribunal Federal presididos por Dias Toffoli, com sua nobre barba de vampiro e sua certeza de que não existe conflito de interesse, estão, mais uma vez, considerando atalhar a prisão em segunda instância. Nas aristocracias, mais do que donos do poder, os nobres eram donos de tudo! A óbvia insegurança do STF diante da prisão em segunda instância mostra a tara aristocrática da matriz cultural do Brasil e, com ela, o nosso mais profundo horror à igualdade. Brancos nobilitados por nomeação ou eleição podem ser criminosos, mas (tendo bons advogados) estão isentos de condenação, exceto até o Dia do Juízo Final... Aqui, o rito legal é uma racionalização de cunho político-ideológico para adiar e inocentar anulando montanhas de fatos. Não sei, confesso, como conseguimos abolir a escravidão!
Também não tenho dúvida de que esse ordálio do Supremo é mais um rito de passagem a confirmar que o crime efetivamente compensa para os que estão drasticamente separados de nós outros, os cidadãos-plebeus. Pensando bem, há mais pompa e circunstância na realeza populista brasileira do que na assumida nobreza do Japão.
Consolo-me com Montaigne quando dizia que “no mais alto trono do mundo o homem senta-se com o traseiro”.
Roberto DaMatta
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