“Aqui tudo parece/ Que era ainda construção/ E já é ruína”, porém, adverte o poeta. A crise do governo Sebastián Piñera, no Chile, e a vitória eleitoral do peronista Alberto Fernández, na Argentina, embaralharam o jogo político na América do Sul e, como a música, provocam reflexões sobre o que pode acontecer no Brasil. Estamos diante de uma espécie de El Niño político. O fenômeno climático é provocado por um aquecimento anormal das águas de superfície do oceano Pacífico Equatorial, na altura do Peru, que influencia o clima no Brasil e todo o Cone Sul.
Com a aprovação da reforma da Previdência e a expectativa de que um pacote de medidas administrativas e fiscais do governo está para ser anunciado, havia muito otimismo no mercado em relação ao início de um novo ciclo de expansão da economia, moderado, mas consistente. A crise do Chile, cujos indicadores econômicos são melhores do que os nossos, mostrou que a economia moderna e competitiva do vizinho escondia um país sem rede de proteção social e com desigualdades gritantes, sobretudo na distribuição de renda.
A derrota de Maurício Macri era pedra cantada, mas, nem por isso, merece ser desconsiderada. A volta dos peronistas ao poder sinaliza que os argentinos colocaram em segundo plano as denúncias de corrupção contra a ex-presidente Cristina Kirchner, agora vice mandatária do país, mais uma vez. O fracasso de Macri pode ser visto por vários ângulos, mas o fato é que seu governo frustrou as expectativas de crescimento e bem-estar social da população. A nova ressurreição peronista anima os petistas a sonharem com a volta por cima do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A reação do presidente Jair Bolsonaro às mudanças nos dois países era a previsível. No caso do Chile, viu nos protestos uma conspiração da Venezuela e de Cuba; no da Argentina, a retomada do projeto bolivariano pelo novo presidente eleito, que gritou “Lula livre!” no comício de comemoração da vitória eleitoral. A rigor, ninguém sabe muito bem o que vai acontecer nos dois países. O melhor mesmo é tentar entender o que se passa por aqui. Na verdade, somos muito diferentes.
Há esgarçamento social também no Brasil, os indicadores de violência mostram sua face mais brutal. Apesar da queda do desemprego e da criação de vagas formais, temos um exército de 28 milhões de pessoas “subutilizadas”, sendo 12,5 milhões no desemprego total, principalmente nas faixas de 18 a 29 anos de idade e acima de 55 anos. Ou o governo Bolsonaro enfrenta esse problema ou os cenários chileno e argentino entrarão no radar dos investidores: ninguém quererá investir em um país em risco de convulsão política e social.
As declarações de Bolsonaro contra a guinada à esquerda nos países vizinhos, e de que as nossas Forças Armadas estarão preparadas para reprimir eventuais protestos da oposição, ao contrário de dar segurança aos investidores, sinalizam mais problemas, ou seja, riscos à nossa democracia. A renúncia de oito ministros e o recuo de Piñera em relação aos protestos, que foram duramente reprimidos, são um alerta de que, nos dias de hoje, essa estratégia não é a melhor opção. Por outro lado, a comparação com a Argentina é boa para a oposição, mas é burra para o governo: estamos a mais de três anos das eleições presidenciais. É nessas horas que o sangue frio faz a diferença.
Voltando à canção do Caetano Veloso, a verdade é que alguma coisa está fora da ordem. Os sinais vêm de toda parte. Citando Alexis de Tocqueville (1805-1859), em análise da Revolução Francesa (“à medida que a situação econômica melhorava, os franceses achavam sua posição cada vez mais insuportável”), o cientista político Marcus André Melo, ontem, na Folha de São Paulo, destacava: “Revoltas e protestos resultam do descompasso entre aspirações e capacidade para materializá-las (“privação relativa”), que aumenta se as expectativas são constantes, mas a capacidade diminui (um choque econômico); se as expectativas elevam-se, mas a capacidade permanece constante (modernização acelerada); ou quando ambos aumentam, mas a capacidade não acompanha as expectativas na mesma proporção (fim de um boom de commodities)”.
Bolsonaro gerou muitas expectativas na população, em algum momento, a conta terá que ser paga. Deveria levar mais em conta esses cenários.
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