quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A lama, a zika, o manicômio: retratos de um Brasil submerso


Digam o que quiserem: não há nada mais simbólico da nossa letargia política do que o rompimento da barragem em Mariana (MG). Resultado de um processo ainda mal contado de contenção e acúmulo de resíduos em local, ao que tudo indica, de espaço e estrutura inadequados, o estrago percorreu centenas de quilômetros debaixo de nosso nariz, arrastando o que havia de vida humana, animal e vegetal pelo caminho.

Parecia uma metáfora, mas era o desfile em homenagem à nossa incapacidade de prever, agir e formular respostas diante de colapsos em iminência. Levou ao oceano mais do que o cinismo de um processo histórico viciado em jogar para debaixo do tapete nossos esqueletos não enterrados. Levou para o mar a prova confessa da nossa incompetência.

A grandiosidade da tragédia é proporcional à sua transversalidade. A Samarco, empresa responsável pela barragem mal construída, é o resultado da aliança entre o capital nacional/estatal (a Vale) com o capital estrangeiro (BHP Billiton), uma herança do tempo em que desbravadores, daqui e de fora, esfolavam o que havia no entorno da riqueza e corriam para outras bandas quando o bem primário se esgotava, deixando no caminho um rastro de deserto e destruição.

Foi assim na corrida do ouro, no ciclo da borracha, na cultura do café, da cana, Da exploração do pau-brasil. Ao poder público caberia monitorar e/ou regular a exploração predatória, não fosse também parte dele, numa simbiose iniciada nas formas de financiamento de campanha que não identificam cor nem projeto, apenas prospecção e negócios.

Em 2015, a multidão viu em pânico, a multidão viu atônita, como na Rosa dos Ventos de Chico Buarque, o seu falso despertar. Porque tudo aqui opera aos solavancos, entre prisões e desbaratamento de gangues e carteis, mas recua até quando avança: nossa maior aposta para o futuro, a exploração do petróleo na camada do pré-sal, acaba de ser condenada, na Conferência do Clima em Paris, a se tornar uma riqueza do passado em desuso.

O Planeta caminha para a substituição paulatina dos gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono que se acumulam na atmosfera e causa o aquecimento global, por fontes alternativas de energia.

Estamos prontos para o debate?

Ou falar em aquecimento global será, por aqui, conversa também de petralha ou tucanalha, impossível de ser colocado à mesa como uma questão de TODOS – como é também a violência contra negros, pobres, mulheres e população LGBT?

“Foi você”. “Não, foi você”. “A culpa é sua”. “É sua”. “Canalha”. “Corrupto”. Os sopapos são proferidos em margens opostas; no meio passam toneladas de lama tóxica que fingimos não ser nossa.

Os momentos mais agudos de polarização são também os momentos mais escassos de inteligência. É nesse miolo que passam desapercebidos os falsos profetas, os falsos conciliadores, as falsas pontes para o futuro.

É o que se pode concluir quando, por exemplo, a presidenta que mentiu para se eleger passa a ser alvo do adversário derrotado nas urnas (que provavelmente não mentiu tão menos assim) e para sobreviver no cargo abre as comportas de postos-chave para aliados de ocasião.

Um deles, representante da ala rebelde da Câmara que mal assumiu o Ministério da Saúde, acaba de instalar na coordenação geral de Saúde Mental um conhecido militante da contra reforma psiquiátrica.

Anos de debates, estudos e encaminhamentos em direção à humanização do tratamento substituíram, na última década, o doente pelo usuário, o preso pela pessoa, e possibilitaram a criação, ainda insuficiente, dos chamados centros especializados de atenção psicossocial. Tudo porque, em algum momento, fomos capazes de ver a lama – e as condições desumanas, características de um holocausto, de uma fábrica de internações que encheu as burras de seus gestores e destroçou vidas lançadas às jaulas quando mais precisavam de atenção.

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