quinta-feira, 16 de abril de 2020

Uma guerra sem vacina

A demora de o dinheiro chegar à ponta mais frágil da pandemia revela uma intricada disputa de poder que nem mesmo o imperativo moral imposto pela tragédia social é capaz de relativizar. Três frentes desta disputa ganharam holofotes esta semana.

A primeira é aquela que passa pela ajuda para que Estados e municípios possam fazer frente aos gastos da pandemia em meio a uma queda generalizada de arrecadação. Depois de assistir ao projeto passar com folga na Câmara, o governo federal investe no Senado para mudar os critérios da distribuição.

Os deputados acolheram a perda de arrecadação como o crivo a guiar a alocação de recursos. O Ministério da Economia pressiona para que os critérios sejam os mesmos já adotados no Fundo de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM). Na Câmara, o presidente da Casa, Rodrigo Maia, fez valer o argumento de que este critério não se adequa a um momento que tem na perda de arrecadação o principal imperativo das finanças públicas.


Por trás dessa tecnicalidade, está a pressão do governo para evitar que os governadores cuja defesa do isolamento social mais reverbera, João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ), e que também são os mais afetados pela perda de arrecadação, acabem sendo ‘recompensados’ pela extensão da quarentena, posição que colide frontalmente com aquela defendida pelo presidente Jair Bolsonaro.

O governo conta com a existência, no Senado, de uma bancada de oposição aos atuais governadores para mudar os critérios. Ainda que custe a se provar eficaz, a pressão revela a convergência entre o ministro Paulo Guedes e o presidente.

O primeiro tenta conter o gasto adicional advindo de uma compensação de perdas de receita. E Bolsonaro se vale da obsessão fiscal do seu ministro para tentar passar uma risca de giz na atuação dos governadores que mais o confrontam nesta crise numa disputa que tem 2022 como pano de fundo.

A segunda frente de batalha se trava entre os projetos para tirar a economia do atoleiro. Com base no estudo elaborado pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército, ministros como o da Infraestrutura e do Desenvolvimento Social, Tarcísio Freitas e Rogério Marinho, buscam apoio dos ministros palacianos para projetos que dependeriam diretamente de recursos orçamentários. Quem já teve acesso aos projetos do Ministério da Infraestrutura garante que, com R$ 5 bilhões, a Pasta seria capaz de gerar 1 milhão de empregos reativando obras em todo o país.

Ainda que a emenda constitucional que instituiu o Orçamento de guerra libere das amarras fiscais os gastos da pandemia, o ministro Paulo Guedes resiste a acatá-los. Prefere focar em iniciativas como aquela que busca incentivar bancos privados a aderir a um plano de resgate de empresas com novos empréstimos e títulos. Numa demonstração de que resiste a abandonar a velha cartilha, o ministro insiste em uma solução de mercado, ainda que não haja evidências de que os bancos privados estejam dispostos a aderir aos seus planos.

Na outra ponta, os ministros se valem do estudo militar, que foi tirado de circulação, para buscar um alinhamento com o comitê gerido pelo ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, ex-chefe do Estado-Maior do Exército. O texto, que menciona duas vezes a necessidade de um novo Plano Marshall, cita a manutenção, “ou até ampliação”, da capacidade logística do país como uma saída aventada para a paradeira geral na economia.

E, finalmente, o terceiro ‘front’ une os partidários da reativação da economia via investimento público aos capitães do sistema judicial. Ecos desta batalha apareceram esta semana com a publicidade do ofício encaminhado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, aos ministros da República recomendando que estes lhe deem ciência das notificações recebidas do Ministério Público Federal.Gerou aguerrida reação dos procuradores da República, mas extrapola a disputa de prerrogativas dos procuradores frente ao PGR. A lei prevê que o procurador-geral da República tome conhecimento das notificações que cheguem ao presidente e ao vice, ministros de Estado, de tribunais superiores e parlamentares.

Depois de Geraldo Brindeiro (1995 a 2003), porém, os procuradores-gerais não mais se valeram da prerrogativa. Seja por respeitarem a autonomia dos procuradores, na visão de quem a defende, seja por se omitirem ante poderes descontrolados do MP, segundo seus críticos.

A atitude de Aras reforça a percepção de que o atual PGR retoma a linhagem Brindeiro porque tem agido, até aqui, para barrar todos os questionamentos feitos a Bolsonaro, da campanha #brasilnaopodeparar à ofensiva do presidente contra as quarentenas estaduais.

Ainda que a prerrogativa de Aras esteja prevista em lei, os procuradores se queixam de que o PGR, contumaz defensor da “unidade” do MP, confrontou-a ao se dirigir às autoridades passíveis de notificação sem prévio entendimento com os procuradores. Acusam ainda o PGR de não se ater às notificações do primeiro escalão mas se estender a todos os órgãos executivos dos ministérios.

A diligência de Aras pode ser várias explicações. A proximidade da substituição do ministro Celso de Mello, vaga que disputa palmo a palmo com o advogado-geral da União, André Mendonça, é uma delas. A substituição iminente de Mandetta é outra. Ao centralizar a ação do MP, Aras evita que um nome alinhado com a temerária percepção de Bolsonaro sobre a pandemia seja alvo de questionamento da instituição.

E, finalmente, a atitude do PGR pode estar alinhada à visão daqueles que querem se valer de uma retomada ágil de obras, encomendas e serviços para fazer andar a economia pós-pandemia sem os crivos habitualmente estabelecidos pelas instituições de controle. E aqui também Aras mostra-se afinado não apenas com o presidente do Supremo, Dias Toffoli, como com o presidente da República contra quem a Constituição lhe deu a atribuição de representar.

Representantes do bolsonarismo raiz têm municiado procuradores federais e estaduais sobre ações de governadores em busca de irregularidades que possam vir a desmoralizá-los frente à queda de braço com o presidente. Como os chefes dos executivos estaduais não estão entre as autoridades cujas notificações pelo MP lhe devem ser previamente comunicadas, o PGR lava as mãos. Não apenas cumpre a higiene da pandemia, mas franqueia a temporada de caça aos governadores.

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