Essas perguntas, antigas como o fogo e tão incómodas quanto a verdade, não cabem em prompts. Não se comprimem em linhas de código. E é por isso que a filosofia, mesmo em tempos de Inteligência Artificial, não morre — antes persiste, como um suspiro silencioso no meio do ruído.
Pensemos: a IA aprende padrões, reproduz estilos, sintetiza dados, mas ignora a angústia ética de Espinosa, a ironia trágica de Sócrates, a esperança utópica de Bloch. Ela pode imitar uma reflexão, mas não sentir a dúvida que a torna viva. Porque filosofar não é apenas raciocinar — é existir com inquietação. É recusar que a vida se reduza a um menu de opções predeterminadas.
Por isso, neste dia, façamos um gesto de resistência silenciosa: apaguemos momentaneamente o mundo digital e abramos um livro de Montaigne, de Arendt, de Alain — ou simplesmente sentemo-nos, como Diógenes ao sol, a contemplar o absurdo da pressa coletiva.
A filosofia não tem utilidade prática. Mas tem tudo a ver com o que nos mantém vivos: o desejo de compreender, de escolher, de duvidar — e, acima de tudo, de não nos deixarmos programar sem consciência.
E talvez aí, só aí, resida a sua vitória contra o artificialismo: porque, por mais que a inteligência se torne artificial, o espanto — esse — será sempre humano.
Mas será que ainda perguntamos? Ou já nos habituámos a delegar o pensamento? Vemos jovens que dominam interfaces, mas não dominam os seus impulsos; adultos que acumulam seguidores, mas não sabem dialogar com a própria consciência. Em nome da eficiência, sacrificámos o tempo da maturação ética. Em nome da neutralidade técnica, esquecemos que toda a tecnologia carrega escolhas morais — e que, muitas vezes, as mais perigosas são aquelas tomadas por quem se julga isento de responsabilidade.
A filosofia, nesse contexto, não é um luxo erudito, mas uma vacina contra a banalidade do mal, aquela que Hannah Arendt tão bem descreveu: o mal que surge quando os homens deixam de pensar. Se aceitamos que algoritmos decidam quem merece crédito, quem é suspeito, quem é “relevante” nas redes, sem questionar os critérios por trás dessas decisões, estamos a entregar o nosso futuro a lógicas opacas — e, pior, indiscutíveis. A filosofia ensina a duvidar, a desmontar discursos, a exigir transparência. É, por isso, uma prática de liberdade.
E se queremos que as crianças de hoje se tornem adultos capazes de discernir entre o justo e o conveniente, entre o sensato e o viral, então a filosofia não pode ser um acessório do ensino secundário — deve estar desde o 1.º ciclo, não como disciplina rígida, mas como atitude: como arte de escutar, de argumentar, de imaginar mundos melhores. Uma criança que aprende a formular “porquês” com profundidade, que discute o que é justo numa fila para o lanche, que reflete sobre o que é ser amigo, está a treinar a sua humanidade. E essa é a única competência que nenhuma IA conseguirá usurpar.
Paulo Freire lembrava-nos que ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens educam-se entre si, mediatizados pelo mundo. A filosofia, entendida como diálogo crítico com o mundo, é o coração dessa educação libertadora. E não há liberdade sem pensamento próprio, nem pensamento próprio sem tempo, silêncio e coragem — valores que hoje parecem em risco de extinção.
Por isso, neste Dia Mundial da Filosofia, não celebremos apenas os grandes pensadores do passado, mas defendamos o direito de todas as crianças — e de todos os cidadãos — a pensar, a duvidar, a errar e a recomeçar com lucidez. Porque um país que descura a filosofia nas escolas não está apenas a poupar papel ou horários — está a entregar o seu futuro a quem já decidiu por nós. E isso, filosoficamente, é inaceitável.
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