terça-feira, 13 de junho de 2023

Lula parece não entender que relação com Congresso mudou

O Brasil não mudou seu modelo político. Ele continua a ser o presidencialismo de coalizão. O sistema é presidencialista e multipartidário. A federação contém distintos arranjos partidário-eleitorais. A relação entre o voto presidencial e o voto para deputados é tênue, dada a diferença entre os colégios eleitorais, nacional para os presidentes e estadual para parlamentares.

Daí a quase impossibilidade de que o presidente eleito consiga maioria com o seu partido no Congresso, um dos elementos que tornam o presidencialismo de coalizão inevitável. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, no Brasil o presidente não governa sem maioria na Câmara e no Senado. Logo, precisa formar uma coalizão de partidos que lhe garanta condições de governar.

Todavia, o fato de um partido ser favorito na disputa presidencial influencia fortemente sua estratégia para as eleições parlamentares. Embora a relação seja muito mediada, um partido "presidencial" tende a ser muito competitivo nas eleições parlamentares, mas não a ponto de fazer a maioria.

O PSDB cresceu nas vitórias de FHC. O PT ganhou presença parlamentar robusta nas eleições de Lula. Ficou com a maior bancada em 2010, quando Dilma ganhou seu primeiro mandato. Manteve esta posição em 2014, embora perdendo cadeiras. O PSL inchou na onda Bolsonaro. Os partidos presidenciais estiveram entre as três maiores bancadas na Câmara durante os mandatos dos governantes que elegeram.

O modelo entrou em crise em razão de mudanças estruturais e comportamentais na política brasileira. A ruptura eleitoral de 2018 desestruturou o padrão que formou governo e oposição, de 1994 a 2014, e equilibrava o processo político.

Esse padrão se assenta em dois eixos partidários-eleitorais. Um eixo é bipartidário, no qual se disputa a Presidência da República. O outro é multipartidário, em que os partidos competem por cadeiras no Congresso, com o objetivo de maximizar seu ativo parlamentar para ingressar na coalizão governista, dependendo de quem seja eleito para o Planalto.

Demais candidatos a presidente, quando chegaram a ser competitivos, não conseguiram ultrapassar os 20% dos votos.

O eixo bipartidário, de vocação presidencial, se rompeu com o estilhaçamento do PSDB pela onda Bolsonaro. O espaço vazio deixado pelo ocaso dos tucanos complica bastante as relações governo-oposição. Não está claro que legenda o substituirá na disputa nacional com o PT. Se esse eixo não se refizer, as eleições presidenciais podem se tornar mais voláteis, com impacto negativo na formação das bancadas, na estabilidade política e na governabilidade.


A ruptura eleitoral também deixou o eixo multipartidário instável. Os partidos estão na fase de desalinhamento de um possível processo de realinhamento. Isso muda a correlação de forças no sistema.

O realinhamento partidário acompanha as mudanças no processo eleitoral. A proibição de coligações proporcionais e a cláusula de desempenho mais exigente reduziram a fragmentação partidária. Ela havia atingido seu ápice em 2018, quando o índice de partidos efetivos, medida tradicional de fragmentação, chegou a 17,4 para a Câmara. Em 2022, caiu para 9,2, retornando ao patamar de 2006.

É provável que a fragmentação caia ainda mais. Não por acaso todos os partidos estão fazendo campanha na TV para aumentar sua filiação e capilaridade.

A queda, contudo, não foi acompanhada pelo crescimento dos partidos mais competitivos, que perdem cadeiras desde 2010. As siglas relevantes estão com números medianos, da ordem de 35-40 deputados. Somente o PL, com 99 cadeiras, e o PT, com 68, têm bancadas relativamente robustas.

A redução do tamanho médio das bancadas, de 2014 a 2022, fez com que o MDB, antigo PMDB, perdesse a efetividade como partido-âncora da coalizão encabeçada pelo PT nos dois primeiros governos Lula, ajudando a ampliar as alianças petistas de agora ao centro.

Os partidos-âncoras servem como nódulos de atração no espaço "ideológico" da coalizão. Fernando Henrique teve o PFL como âncora de centro de sua base. Alcançava maioria de quase 70% do Congresso apenas com o PSDB, PFL e MDB.

Depois o PFL renomeou-se Democratas e, em colapso, fundiu-se com o PSL, virando União Brasil, que não reúne as condições mínimas de liderança e composição para atuar como âncora de centro numa coalizão.

No início dos anos 2000, Lula formava maioria com seis partidos. O PT era o âncora à esquerda, e o MDB, ao centro. No governo Dilma, o MDB continuou como âncora ao centro da coalizão, mas foi se deslocando para fora e para a direita, até o rompimento, em 2016, e o impeachment.

Com essas mudanças estruturais, a governabilidade ficou mais penosa e mais dependente do desempenho macroeconômico do governo. Neste terceiro mandato de Lula, já se vê que o MDB não tem mais a mesma musculatura política para ter eficácia como âncora. Dividido, não consegue equilibrar a coalizão, abrindo seu escopo para partidos ao centro —e a coalizão, assim, tende a pesar para a esquerda, perdendo apoio.

Afora isso, o Legislativo ficou mais poderoso. Outro conjunto de mudanças estruturais alteraram as relações do Executivo com o Congresso. As restrições à edição e reedição de medidas provisórias, assim como o prazo para perda de validade, reduziram o poder de decreto do presidente.

A pressão do prazo sobre o governante para que ceda ao Legislativo é maior do que o incentivo aos parlamentares para que votem as MPs. Foi o que vimos na votação que definiu a nova composição de ministérios.

A faixa impositiva das emendas parlamentares ao Orçamento tem aumentado, diminuindo a margem de manobra presidencial no manejo da coalizão. O orçamento secreto, uma deformação das emendas de relator que tinham objetivo meramente contábil, criou a demanda dos parlamentares por liberações mais discricionárias e ágeis de recursos orçamentários. A estrutura de preferências dos parlamentares na busca de recursos e cargos mudou e ficou mais exigente.

Nesse cenário, partidos medianos e pequenos, para melhorar o acesso a recursos de poder distribuídos proporcionalmente ao tamanho das bancadas, uniram-se em grandes blocos. A eles se juntam as federações, formadas como alternativa às coligações proibidas nas eleições proporcionais.

Blocos e federações são, tecnicamente, coalizões. Se um bloco ou federação passa a fazer parte da coalizão de governo, a chamada "base do governo", surgem coalizões dentro de coalizões. Aumentam a heterogeneidade e a complexidade do manejo da base, assim como as diferenças na hora de votar.

Os blocos partidários diferem das frentes temáticas, como a Frente da Agropecuária. As frentes são capazes de votar unidas nos projetos que afetam diretamente os interesses ligados a seu tema. No mais, tendem a dispersar o voto. Já os blocos têm maior dificuldade para encontrar temas de interesse comum e costumam se dividir internamente com maior frequência.

Outra consequência das transformações é o aumento do poder do presidente da Câmara e, em menor escala, do presidente do Senado. A articulação entre o presidente da República e os presidentes das Casas do Congresso passou a fazer parte necessária do instrumental da governança. As lideranças no Congresso dizem ao presidente que ele precisa ter uma base mais sólida. Não é tarefa fácil no contexto atual —e talvez nem seja factível.

As coalizões se tornaram muito líquidas com as mudanças, o que exige mais do governo, tanto sob a forma de mais cargos e verbas, quanto em moedas simbólicas, que os políticos definem como "prestigiar". Por exemplo, dar demonstrações de apreço e criar a imagem de que o parlamentar tem influência junto ao Planalto.

Isso reforça a relação do parlamentar com os cabos eleitorais. Para o Planalto, é preciso conversar muito, mostrar comprometimento com prioridades bem definidas e abrir espaço para compromissos nos demais campos.

Também aumentou o número de parlamentares com pautas antagônicas às do governo. O centrão e a extrema direita têm muitos representantes de grileiros, garimpeiros e madeireiros, por exemplo. Outros estão ligados a empreiteiras com interesses em hidrelétricas, linhões e rodovias que podem condenar a Amazônia ao colapso ecossistêmico. Em suma, coalizões líquidas representam mais pressão e mais risco para os governos.

Lula parece ainda não ter entendido a natureza da frente democrática que o elegeu. Ela não se limita às forças que subiram em seu palanque. A frente se estende aos partidos que estão na sua coalizão no Congresso.

O governo conta com maioria nominal de cerca de 280 deputados, mas isso é uma miragem. O tamanho real da coalizão de Lula, a que lhe é fiel, está perto de 150 deputados. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tem insistido neste ponto, em declarações públicas e em suas conversas com Lula.

Nos partidos que já compunham seus governos anteriores, a correlação de forças internas mudou. Há lideranças novas com tanta ou mais influência do que aquelas com as quais Lula conviveu no passado.

O colégio de líderes ficou muito poderoso. A agenda de Lula terá que ser compacta, algumas prioridades que consiga negociar, além dos poucos projetos que Arthur Lira considera "de interesse do Brasil".

O ministério não reflete, nem representa, a frente que se dispôs a apoiá-lo. Lula não parece ter entendido a maior complexidade do cenário atual, em relação aos anos de seus dois primeiros mandatos. O Brasil e o mundo mudaram muito, e os problemas globais e nacionais aumentaram e se tornaram mais difíceis de resolver.

A continuidade de coalizões líquidas e disputas presidenciais voláteis, sem um eixo partidário sólido, pode comprometer a governabilidade. Se estivermos em transição para uma nova configuração do sistema partidário, esta pode ser uma crise conjuntural.

Quando o novo sistema se estabilizar, os partidos tendem a ficar mais fortes, a fragmentação cairá mais, as bancadas aumentarão de peso. O realinhamento partidário e a recomposição do eixo de disputa presidencial produziriam novo equilíbrio dinâmico, reduzindo os riscos para a governabilidade, no médio prazo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário