quinta-feira, 7 de maio de 2020

Imagem do Brasil adoece

Quando a tarde caía como um viaduto, ali no final da década de 70, o mundo espichava um olhar curioso em relação ao Brasil. A campanha pela anistia secava as lágrimas de Marias e Clarices, e aquele gigante da América do Sul iniciava a caminhada em direção à campanha pelas eleições diretas e o retorno à democracia.

Era também o momento em que o desmatamento da Amazônia, estimulado pelos governos militares de então, chegava às manchetes dos principais jornais do mundo. A abertura da Transamazônica, a criação de grandes fazendas de gado no sul do Pará e a aventura de produção de celulose no Amapá inquietavam os pioneiros daquilo que viria a se transformar na grande onda ambientalista global.

As diretas demoraram um pouco para chegar. Mas a democracia retomou seu rumo a partir da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985, e o Brasil voltou a colecionar simpatias ao redor do mundo. Aquele lugar distante ainda cheio de problemas, como dívida externa, inflação e pobreza, mas com uma ponta de otimismo em relação ao futuro.

A Amazônia, por sua vez, estacionou de vez na lista dos principais temas mundiais. O meio ambiente conquistou em poucos anos lugar de grande destaque na agenda global. E o Brasil, aquela recente democracia que buscava nova posição sobre o tema, se tornou a sede de uma enorme conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992. A partir dali o país conquistaria o status de potência ambiental global.

O que poderia dar errado?

Em 1984, as camisas amarelas eram o símbolo da campanha pelas eleições diretas, que movimentaram comícios de mais de um milhão de pessoas nas principais capitais brasileiras. Hoje elas foram raptadas pelos mais radicais defensores do presidente Jair Bolsonaro, que foram às ruas de Brasília no domingo (3) com suas costumeiras faixas em defesa de uma intervenção militar e do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

Na década de 80, jornalistas de todo o mundo relataram a ampla campanha que levou ao fim da última intervenção militar. Agora a imprensa internacional publica mais uma vez fotos de brasileiros nas ruas de camisas amarelas. Mas o conteúdo das reportagens publicadas ao redor do mundo não pode ser chamado de otimista.

Pandemia e política

Ao relatar os últimos fatos referentes à pandemia do coronavírus no final de semana, o jornal inglês The Guardian publicou, sob a foto de um jovem com a camisa da seleção brasileira, a informação de que Bolsonaro estimulou novos protestos de rua, apesar dos apelos de seu ministro da Saúde para que as pessoas permaneçam em casa.

O francês Le Monde apontou os desafios que o Brasil tem pela frente. “Uma pandemia mundial, acompanhada de uma crise econômica: tudo isso não era suficiente para Jair Bolsonaro”, observou o jornal, ao comentar a demissão do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e as denúncias que pesam contra o governo.

“O Brasil”, prosseguiu o Le Monde, “está igualmente mergulhado em uma grave crise política, de consequências potencialmente explosivas”.

A manifestação em Brasília também foi tema de destaque no site da rede de televisão Al Jazeera. Segundo o texto, Bolsonaro “atacou o Congresso e o Judiciário em um discurso para centenas de manifestantes, enquanto o número de casos do corononavírus ultrapassou 100 mil, demonstrando o crescente isolamento do antigo capitão a respeito de sua atuação diante da pandemia”.

As mesmas camisas amarelas estão estampadas em reportagem a partir de São Paulo publicada pelo jornal inglês Financial Times, que aborda as mais recentes preocupações dos líderes empresariais brasileiros em relação ao governo Bolsonaro.

Segundo a publicação londrina, a comunidade de negócios, antes satisfeita com as posições pró-mercado do novo presidente, está agora “ansiosa porque o panorama econômico e político sob o presidente mercurial está se deteriorando rapidamente”.

Índios

Do outro lado do Atlântico Norte, o jornal The New York Times – que também acompanha passo a passo a crise política em Brasília – voltou a abrir grande espaço para o outro tema brasileiro que conquista atenção internacional: a Amazônia. Em longa reportagem de seus correspondentes a partir do estado de Rondônia, o jornal alerta para o temor dos índios de um “etnocídio”.

Os correspondentes informam que Bolsonaro já enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei destinado a regulamentar a mineração em terras indígenas e lembram que o atual presidente fez do desenvolvimento da Amazônia uma das suas principais promessas de campanha.

“Desde que chegou ao governo, Bolsonaro moveu-se de forma agressiva para implementar essas metas de desenvolvimento, colocando em prática políticas que, segundo temem os críticos, podem levar a uma nova era de etnocídio para as comunidades indígenas”, diz o The New York Times.

A reportagem chegou aos leitores do jornal poucos dias antes da publicação, nas principais capitais do mundo, de um manifesto lançado pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que prepara uma grande exposição sobre a Amazônia para 2021.

Após percorrer a região durante os últimos anos, ele percebeu que os índios da Amazônia, já ameaçados pela invasão de suas terras por garimpeiros, madeireiros e grileiros, podem ser os grandes prejudicados pela expansão no Brasil da pandemia do coronavírus.

Em seu “Apelo Urgente ao Presidente do Brasil e aos Líderes do Legislativo e do Judiciário”, Salgado recorda que os povos indígenas do Brasil “enfrentam uma grave ameaça à sua própria sobrevivência com o surgimento da pandemia do Covid-19”.

O manifesto, assinado por personalidades internacionais como o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, o ex-Beatle Paul Mc McCartney, a cantora americana Madonna e o cineasta mexicano Guillermo del Toro, ressalta que muitas comunidades indígenas estão completamente desprovidas de defesa contra a pandemia.

“Sem nenhuma proteção contra esse vírus altamente contagioso, os índios sofrem um risco real de genocídio, por meio de contaminações provocadas por invasores ilegais de suas terras”, observam os signatários do apelo. “Esses povos são parte da extraordinária história de nossa espécie. Seu desaparecimento seria uma grande tragédia para o Brasil e uma imensa perda para a humanidade”.

É difícil prever se essas palavras tocarão o coração de Jair Bolsonaro. Mas sempre se pode lembrar que o apelo foi publicado um dia antes da morte, por coronavírus, do poeta Aldir Blanc, o mesmo que escolheu as palavras daquele que viria a ser um hino da campanha pela volta da democracia no Brasil. “A esperança”, escreveu Blanc naquele distante 1979, “dança na corda bamba de sombrinha”.

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