Se o século passado não começou, concretamente, em 1900 ou em 1901 e sim em 1914, a década que ora finda começou com a crise financeira de 2008 e seu séquito de catástrofes econômicas, sociais e políticas. A desmistificação do capitalismo predatório, dominado pelas finanças, foi, sem dúvida, um dos destaques dos Anos 10, assim como o recrudescimento do fascismo, do fundamentalismo religioso (com Maomé e Jesus), do populismo nacionalista e pestilências correlatas ou decorrentes, como as eleições de Trump e Bolsonaro e a malaise global (de Hong Kong a Santiago do Chile).
A questão ambiental fechou a década como a mais urgente e candente de quantas, a seu modo, contribuíram para desmistificar a crença de que fomos criados à imagem e semelhança de Deus todo poderoso, criador – não destruidor – do Céu e da Terra. Não há teodiceia que me explique e justifique a devastação da Amazônia, a lenta destruição do planeta, nem a escolha de Ricardo Salles para ministro do Meio Ambiente.
É muito infortúnio acumulado para nos punir até de pecados de que me sinto totalmente isento, assim como os leitores que não votaram no dendrófobo Bolsonaro nem facilitaram sua eleição.
Claro que, como sempre, inclusive em 1350, tido como o ano mais terrível de todos os tempos, coisas legais aconteceram. A expansão da Netflix, das lutas igualitárias e das mídias sociais, por exemplo. Mas antes que vocês tenham de recorrer ao Google para saber o que de tão terrível ocorreu em 1350, informo: naquele ano a peste negra fez suas primeiras vítimas na Europa.
Por falar em internet, quatro anos atrás, numa palestra em Turim, Umberto Eco (uma das perdas intelectuais mais sentidas do decênio) pôs em xeque a euforia em torno das mídias sociais. Ainda não se falava muito em fake news e outras pragas disseminadas pela internet quando ele soltou esta joia de sabedoria crítica: “As redes sociais deram o direito à palavra a uma legião de imbecis, que antes apenas falavam num bar, sem causar dano à coletividade”. Se obrigado a escolher a frase da década, talvez me inclinasse por essa aí.
Alçado pela TV a um patamar em que já se sentia superior, o imbecil analógico (originalmente conhecido como o idiota da aldeia) foi promovido a “portador da verdade”, a demiurgo digital de baboseiras, patranhas e absurdos que só costumam germinar em cérebros de configuração quase protozoária – mas com Jesus, constrangidíssimo, em seu coração.
Os imbecis multiplicam-se como ratos e ervas daninhas, e não há porque subestimar sua insopitável capacidade destrutiva. Formam a base irredutível e incondicional, o núcleo duro do trumpismo e do bolsonarismo – e é quase exclusivamente para eles e seus preconceitos fundamentalistas que Trump e Bolsonaro governam, forjando factoides e disparando asneiras e agressões gratuitas no Twitter, para desviar a atenção de fatos e suspeitas comprometedores.
Eles representam a barbárie, a ignorância satisfeita, a estupidez rancorosa, o ressentimento perverso, que, no caso brasileiro, atingiram seu mais alto grau de contaminação nos ministros que se ocupam de estrangular a educação e a cultura, degradar o meio ambiente e avacalhar a diplomacia, para realçar apenas os mais em evidência na mídia.
Lunáticos anti-iluministas e grotescos evangelistas do terraplanismo, investem como cruzados contra a ciência e o racionalismo. A cada bizarrice que cometem ou extravasam, se, por escrito, com solecismos e patéticos erros de ortografia, baixa em mim e em muita gente um sentimento de profundo desânimo, de descrença no País. Mais do que isso: de vergonha de ser brasileiro.
Em trevas passadas, Otto Lara Resende, deprimido e impotente diante das coisas que aqui aconteciam, ameaçou “trancar sua matrícula de brasileiro”. Sorte dele não poder estar aqui agora, a testemunhar e padecer os efeitos dos piores anos de nossa República.
Otto só faltou amaldiçoar o Conde Afonso Celso, jornalista e acadêmico afamado por um livro de exacerbado e ingênuo patriotismo, escrito em 1900, cujo título – Por que me Ufano do Meu País – sintetizava o fervor com que acreditava na superioridade do Brasil e no seu “deslumbrante porvir”. Exagerou as dádivas que a natureza nos deu e as potencialidades de seu povo, assegurando, nas hipérboles finais, que Deus jamais nos abandonaria. “Se aquinhoou o Brasil de modo especialmente magnânimo, é porque lhe reservava alevantados destinos”, concluiu.
Na mesma época, o poeta Olavo Bilac perpetrou A Pátria, papinha lírica para criança, que nos obrigavam a decorar e declamar, para que não esquecêssemos de amar com fé e orgulho a terra em que nascemos, pois não veríamos nenhum país (“que céu! que mar! que florestas!”) como este. Ou melhor, como aquele.
Do livrinho de Afonso Celso nasceu a palavra ufanismo, há muito pejorativa e hoje, particularmente, descabida. Não conheço um brasileiro em pleno gozo de suas faculdades mentais que se ufane, no momento, da terra em que nasceu.
Está mais do que na hora de alguém escrever algo como “Por que me Envergonho do Meu País”. E enriquecer nosso vocabulário com a palavra “envergonhismo”.
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