sábado, 9 de novembro de 2019

Precisamos falar sobre Guedes

Até agora, os desvarios de Bolsonaro e de alguns de seus ministros e as afrontas constantes à institucionalidade do país têm deixado a equipe econômica do governo em paz. O espaço que teve até aqui a equipe de Paulo Guedes foi importante para a aprovação da reforma da Previdência, que, no frigir dos ovos, foi melhor do que se esperava. As economias que gerará para os cofres públicos nos próximos dez anos parecem adequadas, e a reforma está alinhada tanto com a dinâmica do envelhecimento populacional quanto com a necessidade de tornar as contribuições progressivas, diluindo o mecanismo gerador de desigualdades implícito no regime anterior. É claro que o ideal teria sido combater os privilégios mais diretamente, e é óbvio que os militares não deveriam ter sido poupados. Mas, dentro dos limites do possível, foi uma boa reforma. Fim dos comentários elogiosos.


Na última semana, Guedes desvendou um pacote de propostas de emendas constitucionais (PECs) para reduzir o tamanho do Estado e torná-lo mais eficiente. As PECs também têm como objetivo diminuir a despesa do governo, contribuindo para o equacionamento das contas públicas nos próximos anos. Parece ótimo, não? Quem em sã consciência contestaria esses princípios, sobretudo depois de testemunhar os desmandos do Estado máximo criado durante a gestão de Dilma Rousseff? Reside aí o problema: muita gente parece ter se esquecido de que erros catastróficos como os da condução econômica de Dilma não justificam outros erros catastróficos disfarçados de “liberalismo”, ah, finalmente o “liberalismo”.

É cedo para avaliar o impacto fiscal das medidas de Guedes, mas isso, por incrível que pareça, importa menos. O que realmente importa é a legitimidade das PECs sequenciais ou uma chuva de PECs. Emendas constitucionais da envergadura proposta alterarão, se aprovadas, a estrutura da Constituição de 1988. A Constituição Federal de 1988 cometeu erros, tentou impor um Estado de Bem-Estar Social excessivamente oneroso para a realidade do país. No entanto, o princípio continua correto: em um país de desigualdade elevada e em que a pobreza extrema é não apenas alta, mas está subindo, não há como prescindir das redes de proteção social que a Constituição criou. Na realidade, no debate macroeconômico moderno, em que a economia política voltou a figurar como elemento de análise de extrema importância, não há quem, em sã consciência, possa defender o Estado mínimo de Guedes. Afinal, o Estado precisa ter o tamanho adequado para atender à população e aos desafios sociais atrelados à desigualdade.

A fala de Piñera, em entrevista recente à BBC, é republicana. Trata do tema das manifestações e da desigualdade dentro dos marcos democráticos, destacando que é preciso mudar a Constituição chilena elaborada pelo ditador Augusto Pinochet. Ao que tudo indica, isso será feito da forma correta: não por meio de PECs sequenciais ou de uma chuva de PECs, e sim por meio de uma Assembleia Constituinte que redesenhe o pacto federativo. Guedes anda falando em pacto federativo, criticando os tais 30 anos de social-democracia — alguém viu esses 30 anos? — e afirmando a necessidade das PECs. Mas, ao propor desfigurar a Constituição de 1988 sem passar pelos processos políticos necessários para garantir a legitimidade do que propõe, age, sim, como o restante do governo Bolsonaro. Ignora a institucionalidade democrática, ou a atropela, em nome de um suposto bem maior, que seria o equilíbrio das contas públicas provavelmente à custa dos programas sociais de que o país tanto necessita.

Entre o Estado máximo que leva ao desastre e o Estado mínimo ilegítimo e perigoso em tempos de insatisfação social, há o Estado de tamanho apropriado para atender às necessidades da população. Qual a chance de que tenhamos esse debate em lugar da malemolência cívica que prefere ignorar obviedades? Confesso que não vou prender a respiração.
Monica de Bolle

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