São dois, até agora, os porteiros que deram depoimentos diferentes sobre a entrada do ex-policial militar Élcio de Queiroz no condomínio Vivendas da Barra no dia do assassinato de Marielle, 14 de março de 2018. No condomínio, morava a família Bolsonaro, a casa ainda pertence ao presidente. Um dos vizinhos, o sargento reformado da PM Ronnie Lessa, está preso, acusado dos disparos feitos com silenciador. Élcio e Lessa se encontraram ali no dia do crime e pegaram, no trajeto, o carro usado para matar Marielle. Élcio seria o motorista. Também está preso.
A investigação troca comandos, é conduzida a passos de tartaruga e revela uma série de erros da perícia e da polícia. Erros primários que não vemos nos seriados policiais na televisão. Nosso pessoal precisa fazer um estágio na Netflix: apenas 6% dos assassinatos no Brasil são elucidados e 94% não. É uma estimativa brutal a favor da impunidade e dos criminosos.
O fantasma de Marielle, essa mãe negra da Maré, casada com uma mulher, vereadora com 46 mil votos, ativista contra esquadrões da morte, continua a assombrar. Que erro de avaliação do mandante e dos homicidas! No ano passado, escrevi um texto intitulado “Quem era essa Marielle?”. Quem ela pensava que era? Marielle não poderia prever uma comoção nacional se fosse morta. Não suspeitava nem de uma emboscada nem da apropriação de seu nome como bandeira. No Rio, no Brasil, no mundo. Mais de 600 dias após sua morte, sua figura só cresce. Porque a investigação é uma bagunça.
Informações emergem como um cadáver inchado que vem à tona. A polícia já admitiu falhas que adiaram a identificação dos suspeitos, mascararam trajetos, armas e ligações. E as falhas prosseguem. Envolvem desconsiderar mensagens de telefones dos acusados, adulterações nas planilhas de quem entra e sai, perícia nas gravações da portaria. Envolvem apresentar o áudio de um outro porteiro como se fosse o anterior.
Todos se apressam a chamar o primeiro depoimento de “fajuto”. Agora, o maior suspeito de crime de obstrução de justiça, falso testemunho e denúncia caluniosa é o porteiro que registrou o número 58 na planilha e diz ter ouvido a voz de “seu Jair”. Naquele instante, não havia crime, Bolsonaro era apenas um mero deputado e estava em Brasília. Esse porteiro está agora oficialmente “em férias”. Mas foi encontrado pela revista "Veja". Mora<span> em um sobrado com o revestimento de concreto à mostra na Zona Oeste do Rio de Janeiro, segundo a revista. "Ele se chama Alberto Jorge Ferreira Mateus e vive no bairro de Gardênia Azul, fincado em área dominada por milícias na Zona Oeste do Rio de Janeiro", afirma a reportagem.
Surpreendido, ele respondeu, interpelado pelos repórteres: “Eu não estou podendo falar nada. Não posso falar nada". O sigilo oficial voltou com força total após as revelações da TV Globo na semana passada. Até a Lei de Segurança Nacional foi invocada contra o porteiro. Ele “mentiu, se equivocou ou esqueceu”, segundo a promotora do MP. Que o sigilo sirva para preservar a integridade do inquérito e não para mascarar a verdade. O presidente e seus filhos devem ter todo o interesse nisso. Essa lambança é atroz, não?
Meus porteiros não são os campeões da informação exata. Interfonam para o apartamento errado. Esquecem de prevenir que haverá festa no play. Deixam entrar na portaria quem está com uniforme da NET ou Light, artifício manjado de assaltantes. Acontece. Somos humanos. Não fazem por mal. Até agora, só erros inocentes.
Nenhum vizinho meu foi acusado de executar político a tiros com silenciador. Nenhum filho meu namorou a filha de um assassino. Nunca tirei foto abraçada com motorista acusado de homicídio. Nunca fui amiga de milicianos. Já pensou? A imprensa não ia largar do meu pé até entender direitinho meu papel. Com razão.
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