domingo, 20 de abril de 2025

Hora e vez da performance do papagaio

O democrata Cory Booker, primeiro senador negro de New Jersey, bateu o recorde mundial de duração de um discurso parlamentar, falando em pé na tribuna contra Trump 25 horas ininterruptas, sem pausa para a toalete. Oposicionistas insinuaram o uso de fralda, mas o fato é que ele superou o recorde do republicano Strom Thurmond, supremacista branco da Carolina do Sul que, muitos anos atrás, deblaterou por 24 horas contra a Lei dos Direitos Civis.

Em termos de energia física, essas façanhas evocam as maratonas de dança durante a Grande Depressão nos EUA, cujos participantes iam até a exaustão para ganhar alguns trocados. Foram dramatizadas em "A noite dos desesperados", filme célebre de Sidney Pollack (1969). Algo não tão estranho quanto a famosa epidemia de Estrasburgo (1518) em que as pessoas dançavam até a morte, mas extremo ainda assim.


Em extremismo vocal, os senadores superam Fidel Castro, quando falava seis horas a um público que se esbaldava em rum, melancia e danças. Aparentemente ninguém escutava nada, mas há testemunha de que, uma vez, quando tossiu, a multidão gritou em uníssono: "Que se cuide, Fidel!". Já entre nós, é recente a opinião do ator Marco Nanini depois de uma sessão da Câmara dos Deputados: "Aquilo é um caos, todos falam, ninguém ouve!"

Mas psitacismo, a performance do papagaio, tem relevância acadêmica. Sobre mecanismos sociais contrários ao Estado, o etnólogo Pierre Clastres observou que os Guayki, sem obedecer literalmente ao chefe, davam grande importância à sua fala. Não pelo dito, mas pelo longo desempenho, uma retórica do tempo em que importa a voz da chefia, não o significado das palavras.

Agora, com a racionalidade oficial pelo avesso, vale uma ideia do que Cory Booker disse, ou apenas performou, chocado por magna obscenidade. Se entendermos a palavra como ver sem mediações a cena de um tabu, é espantosamente obsceno o governo de Donald Trump. Ele é o primeiro a acumular o cargo com gestão de negócios. Em Doral, seu resort de 643 apartamentos, próximo a Mar-a-Lago, mistura golfe com levantamento de fundos, já em campanha para um hipotético terceiro mandato. O preço por cabeça de um jantar é US$ 1,3 milhão. Disse um dos convidados: "É tudo só negócios e dinheiro. A América é uma empresa".

Obscena é a exibição sem véus do poder mefistofélico do dinheiro, indiferente à turbulência e ao sofrimento causados por Trump, agente da destruição pelo caos, que mascara seus interesses privados. Aos investidores bilionários garante que "não é a hora de ficar apenas rico, e sim mais rico". Disso tomou conhecimento a imprensa enquanto ele jogava golfe com Yasir Al-Rumayyan, gestor do fundo soberano de US$ 925 bilhões da Arábia Saudita.

Tudo isso é público, a fala de Cory Booker não trouxe surpresas aos pares no Senado. Mas sua performance é um sobressalto crítico ao espírito do tempo em que loucura metódica não é apenas construção dramática. A expressão machadiana "química do tempo" daria talvez melhor conta do que se passa: uma assustadora e acelerada dissolução dos sentimentos morais.

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