Raskolnikov, embora não tendo lido Marx e considerando-se um super-homem para além do bem e do mal , era também já, em embrião, um comissário do povo; e de facto os primeiros comissários do povo surgiram daquela mesma classe da "inteligenzia" à qual pertencia Raskolnikov e possuíam as mesmas ideias , a mesma sede de justiça social, a mesma terrível coerência ideológica , a mesma inflexibilidade na acção. E o dilema de Raskolniov é o mesmo dos comissários do povo e de Estaline: "Para o bem da humanidade é lícito ou não matar a velha usurária ( ler-se: liquidar a burguesia)?" Portanto, porquê tanta aversão por parte dos comunistas contra Dostoiewski?
Marian Kamensky (Áustria) |
A razão é muito simples. O ódio de Raskolnikov contra a usurária tem uma origem cristã. Este ódio na realidade é o ódio da Idade Média cristã contra o negócio e o lucro , a inconciliabilidade do Evangelho com a banca e as percentagens do juro. Este ódio, esta inconciliabilidade colocaram durante séculos a banca e o comércio nas mãos dos judeus até ao dia em que os povos cristãos da Europa ( e primeiro de todos, o italiano) se aperceberam de que era possível ser-se banqueiro e comerciante e, ao mesmo tempo, boa gente temerosa de Deus, em paz consigo própria e com a religião. Mas Raskolnikov pertencia , como de resto os comissários do povo e Estaline, a um país ainda medieval no qual a banca e o comércio se encontravam na mão de restritos grupos sociais e raciais , um país atrasado, de camponeses agarrados a um cristianismo ainda primitivo e místico. Assim, para Raskolnikov, a banca e o comércio são a usura, e a burguesia europeia e russa que pratica a usura , a usurária; então, é necessário matar a usurária ou seja, liquidar a burguesia.
Mas neste ponto as duas estradas , até aqui unidas, de Dostoiewski e dos marxistas , bifurcam-se: "Eliminemos a usurária e vamos para a frente. Depois da morte da usurária começará uma nova sociedade sem classes nem usura. A criação dessa sociedade justifica amplamente o assassínio da usurária." Em vez disso, Dostoiewski, que se manteve cristão, depois de nos ter conduzido pela mão através de todas as fases do delito que sem dúvida havia meditado, acarinhado e aprovado mil vezes no seu coração, com um súbito volta-face, desaprova repentinamente Raskolnikov ou seja, os marxistas, isto é , Estaline , e diz: "Não , não é lícito matar, mesmo que seja por bem da humanidade. Cristo disse: não matarás." E de facto Raskolnikov arrepende-se, lê o Evangelho juntamente com Sónia. Dostoiewski envolve o fim do seu romance numa aura mística. : "Aqui começa uma nova história, a história da renovação gradual de um homem, a história da sua gradual regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para outro, do seu progresso para uma nova realidade até ali ignorada .» Os marxistas em vez disso, teriam concluído: «Aqui começa a revolução."
O desvio entre Dostoiewski e os marxistas é devido a uma consideração diferente do que é o mal. Para os marxistas o mal é a usurária, ou seja a burguesia; Dostoiewski , tendo primeiramente aceite esta tese, repudia-a e chega à conclusão cristã de que o mal não é tanto a usurária quanto o meio usado, isto é a violência. Este mal de Dostoiewski no romance, não é somente representado pela morte violenta da usurária, mas também e sobretudo pela outra, da inocente e piedosa Lizaveta, irmã da usurária, que Raskolnikov mata, para suprimi uma testemunhado seu crime. Afinal para os marxistas , na realidade omal não existe desde que se trate unicamente de um mal social que pode ser liquidado com a revolução. Em vez disso, para Dostoiewwski o mal existe como facto individual no coração de cada homem e exprime-se exactamente nos meios violentos dos quais se serve a revolução. Os marxistas lavam com a justificação histórica e social mesmo as consciências mais negras , Dostoiewski nega esta lavagem e afirma a existência ineliminável do mal.
Alberto Moravia, "Um mês na URSS"
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