segunda-feira, 14 de março de 2022

Orwell antecipou a sombra de Putin

O alistamento espontâneo de civis de diversas nacionalidades ao lado dos ucranianos desmonta uma certeza do filósofo francês (de direita) Luc Ferry: que nenhuma causa contemporânea mereceria a imolação da vida.

Estariam longe e abandonadas as paixões políticas, as empolgações estéticas (Maiakóvski saía no braço com seus interlocutores) e as identidades nacionais. Furores e arrebatamentos responsáveis por toneladas de mortes, principalmente no século passado.

Em sua conta não entram os fundamentalistas islâmicos, os tais homens-bomba — no caso, não seria sequer uma causa, mas um vácuo civilizacional.

O engajamento da população civil ucraniana, de outro lado, escande a identificação com um revelador instinto de nacionalidade, certamente para a desagradável surpresa de Putin, e em oposição ao conceito niilista e desossado de Luc Ferry, ex-ministro da Educação da França.

Diante de Putin, parte da esquerda retomou o coro com a extrema direita. Bozo e o PCO se encontram do mesmo lado da trincheira — ele, porque jura ser seguidor da crença de Silas Malafaia; o grupelho, por lutar contra a vida alheia.


Não assusta outro naco da esquerda perfilar ao lado de Putin, portanto corroborando com as bombas sobre maternidades e asilos ucranianos, apenas para estar contra os Estados Unidos. É nesse instante que a obra-prima de George Orwell, “Homenagem à Catalunha”, mereceria entrar na cabeça dos putinescos de oportunidade.

Ao passar por Paris, e jantar com Henry Miller, glorioso autor da trilogia “Sexus”, “Nexus” e “Plexus”, Orwell contou-lhe que se juntaria às Brigadas Internacionais na luta contra Franco. Pacifista, Miller deu-lhe seu casaco. E disse: “Infelizmente não o protegerá das balas, apenas do frio”.

Como Putin agora na Ucrânia, os golpistas do general Franco não imaginavam ser ferozmente enfrentados por setores organizados da sociedade espanhola (sindicatos dos trabalhadores, principalmente) ou ainda por uma força internacional, num elenco estelar de intelectuais, como George Orwell, Ernest Hemingway, André Malraux e Arthur Koestler, entre muitos outros.

Talvez fosse ilusão.

Havia então uma crença. E um ingênuo romantismo.

As Brigadas Internacionais atraíram militantes de diversas nacionalidades, quase todos inexperientes em combates, mas apaixonados pela luta contra a tirania representada pelo General Franco e seu golpe num governo democraticamente eleito, levemente esquerdista, porém expressão do voto. A Guerra Civil Espanhola entraria para a História como sinônimo de traição às causas e às ideias.

Em 1936, à primeira vista, parecia não haver dúvida entre os opositores antifascistas. Franco deveria ser batido; a República, defendida; e não se negociava dar a vida em troca da liberdade.

Mesmo na superfície já ocorriam as clássicas divisões da esquerda. Comunistas não se bicavam com os trotskistas e os anarquistas, que desconfiavam de todos. Pareciam apenas divergências políticas, visões opostas na condução à vitória. O fascismo seria o único inimigo, escreveu Orwell em seu dramático relato.

Stálin não pensava assim. Porque ele era a sombra.

Orwell encarnava um tipo de intelectual que andou meio fora de moda até a atual guerra da Ucrânia. Acreditava nas suas ideias — e por elas, como Apollinaire ou Blaise Cendrars, pegou em armas, mesmo com a vida em risco.

Lutando na Catalunha, miliciano nas fileiras do Partido Operário de Unificação Marxista (Poum), de inspiração trotskista, junto a um pelotão quase sem munição, passou fome, frio intenso, esteve sob feroz bombardeio, sofreu com os piolhos e acabou seriamente ferido. Por pouco não perdeu os movimentos do braço esquerdo — ao contrário de Bozo, não chorou.

Quando deixou o hospital, leu nos jornais comunistas que ele e seus companheiros do Poum eram fascistas. Com os anarquistas, se viam acusados de espionagem e traição. Andreu Nin, dirigente do Poum, já fora preso e “desaparecido”. Outros trotskistas também seriam eliminados. Estava em marcha a política stalinista de dizimação das forças opositoras a sua esquerda. Bastava espalhar mentiras (“espiões”) e os chamar de fascistas, talkey? Funcionou: milhares de trotskistas e anarquistas caíram presos — e mortos.

Ainda convalescente, Orwell, para não acabar como Nin, se escondeu dos franquistas e da polícia manietada pelos stalinistas. Dormiu nos escombros de uma igreja sem teto, nos canteiros de estradas, andou de esguelha pelas ruas, novamente passou fome. Mas não chorou. Tentou salvar seus companheiros, presos sob falsas acusações, mas, sem sucesso, teve de fugir da Espanha — dos franquistas e dos comunistas de Stálin.

A traição dos comunistas na Guerra Civil Espanhola custou a derrota da República, a vitória de Franco e uma ditadura sanguinária que matou milhares (entre eles, o poeta Federico García Lorca). Só terminou em 1975, com a morte do déspota.

Orwell chegou socialista. Mas saiu da Guerra Civil espanhola com a ideia de escrever “1984”, espécie de epitáfio do totalitarismo em nome da causa.

Putin é a sombra.

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