Anna Kövecses |
O maior de todos os tiranos de Shakespeare é o personagem-título de Ricardo III. Sua ascensão, narrada a partir da trilogia Henrique VI, deriva de um ambiente familiar ao leitor atual: uma sociedade polarizada, rachada ao meio pela Guerra das Rosas. “O objetivo é criar o caos, que preparará o palco à tomada do poder pelo tirano.” O futuro rei Ricardo designa um preposto para semear a cizânia e cevar o ressentimento entre os pobres. “Promete tornar a Inglaterra grande outra vez. Como fará isso? Ataca a educação. A elite educada traiu o povo.” Quer destruir não só os nobres, mas todos os que “leem livros”. Sua personalidade é constituída por um misto de “autoestima sem limites, desrespeito à lei, prazer em causar dor, desejo compulsivo de dominar”. “É patologicamente narcisista e soberbamente arrogante. Tem um sentido grotesco de direito adquirido, jamais duvidando de que pode fazer o que quiser. Espera lealdade absoluta, mas é incapaz de gratidão.” Para chegar ao poder, conta com todos ao redor: os ludibriados; os impotentes ou assustados; os que não acreditam que ele possa ser tão ruim; os que sabem quem ele é, mas preferem encará-lo como normal; os que simplesmente obedecem; e os mais sinistros, aqueles que julgam poder tirar proveito da tirania.
Grenblatt decifra as limitações dos tiranos noutras peças, como Rei Lear e Macbeth. “Shakespeare não acreditava que eles durassem muito. Por mais espertos que fossem, uma vez no poder se revelavam incompetentes.” Dá para evitar a tirania antes do estrago? Nem sempre. Em Júlio César, o assassinato não surte o efeito desejado. “A tentativa de evitar uma crise constitucional precipita o colapso do Estado. O próprio ato que deveria salvar a República acaba por destruí-la.” Mas não é impossível, revela outro exemplo trazido da Roma Antiga: Coriolano, trama em que entra em ação um paradoxo da democracia. “A cidade é protegida da tirania pelos tribunos, políticos de carreira que levam o povo à ação. Ignóbeis e interesseiros, semelhantes aos detestados políticos profissionais nos congressos e parlamentos democráticos, eles é que resistem ao guerreiro-valentão e insistem nos direitos dos cidadãos comuns.” Entre dois males, uma sociedade precisa saber escolher o menor.
Helio Gurovitz
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