quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Fora, Bolsonaro

O xingamento “Globolixo”, com o qual as falanges bolosonáricas agridem reiteradamente a Rede Globo, tem duas origens malignas: uma superficial, de ocasião, e outra histórica, profunda.

Em sua origem superficial, “Globolixo” resulta de um trocadilho que faz troça da marca publicitária “Globeleza”, que a própria empresa adota em suas ações de marketing. À primeira vista, parece apenas um tipo de molecagem inconsequente. Nesse plano, temos a sensação de que o xingamento, um sinal de repúdio à programação e à linha editorial da maior rede de televisão do Brasil, poderia ser empregado por adolescentes de qualquer coloração ideológica, de direita ou de esquerda, indistintamente.

Mas não é assim. O palavrão guarda mais identidade com as milícias virtuais da direita antidemocrática, esse pessoal que, à moda do chefe, elogia torturadores, prega o fechamento do Supremo Tribunal e diz que o uso de máscara é coisa de maricas. Mais que uma tirada ignara, “Globolixo” é uma peça de retórica fascista. Mais do que ofender uma organização de mídia em particular, seu propósito é desacreditar toda a imprensa e todo o sistema de que as sociedades democráticas dispõem para separar o que é verdade factual do que é mentira. A palavra “Globolixo” concentra uma campanha insuflada diretamente pelo Planalto contra a imprensa livre.



Isso fica mais claro quando vamos atrás das origens históricas do termo espúrio. Essas origens remontam a palavra alemã Lügenpresse, algo como “imprensa mentirosa”. O termo frequentou o vocabulário de variadas correntes políticas a partir do século 19. No mais das vezes, servia a forças conservadoras ou ultraconservadoras para atacar órgãos de imprensa mais ou menos liberais, anticlericais e críticos, embora tenha atendido também a facções de esquerda que tentavam denunciar hipocrisias nos jornais burgueses. Entre tantas invocações, vindas de atores tão diversos, foi com os nazistas que a palavra Lügenpresse marcou lugar na história no século 20. Por meio dela os seguidores de Adolf Hitler produziram um estigma contra os judeus que estariam por trás das redações jornalísticas e uma ponta de lança para a propaganda massiva que mobilizaram para desacreditar todos os métodos independentes de verificação dos fatos.



Por que os nazistas rechaçavam o jornalismo? Muito simples. Para eles, só havia verdade nos enunciados do partido – tudo o que não fosse a palavra do partido era mentira potencial ou consumada. Um fato só era fato quando declarado fato pelo partido. Um fato não reconhecido pelo partido não era fato. Tudo muito chapado, muito estreito, bem ao gosto das massas que têm sede de tirania (massas que estão por aqui até hoje).

Em seus diários, Josef Goebbels, o ministro da propaganda do 3.º Reich, afirmou que gostaria de transformar o nazismo na religião do povo. A suástica funcionava, na imaginação dele, como a essência primordial, um sopro inaugural ou, ainda, o DNA insubstituível de todo discurso verdadeiro. Segundo essa dogmática, qualquer forma de expressão ou de representação que pretendesse conter ou indicar alguma verdade teria de carregar em seu código interno a inscrição da suástica. Dizendo Lügenpresse, os nazistas generalizavam seu juízo sobre a atividade jornalística – que seria por inteiro, e em absoluto, uma atividade de produção de falsidades – e rejeitavam de antemão a credibilidade de qualquer voz que não fosse a do próprio Führer.

Nos nossos dias, os fascistinhas de Facebook que repetem o xingamento “Globolixo” ecoam a campanha nazista baseada na palavra infamante Lügenpresse. Eles tentam minar a confiança do público na imprensa para matar o jornalismo de inanição (uma redação que não recebe o alimento da confiança do público morre à míngua). O pacto autoritário e antidemocrático que chegou ao poder com Bolsonaro sabe perfeitamente que para não desabar depende de eliminar a função social de verificação dos fatos, encarnada na imprensa independente – essa instituição social que está nos diários, como este aqui, nos telejornais de respeito, como o Jornal Nacional, e numa série de pequenas redações profissionais destemidas que investigam os acontecimentos com método e honestidade intelectual. O projeto de poder que aí está tem consciência de que só sobreviverá se matar o espírito livre da imprensa. Coerentemente, encoraja seus seguidores gritar “Globolixo”.

Em recente levantamento da entidade Repórteres Sem Fronteiras, constatou-se que 80% dos ataques contra a imprensa nas redes sociais em 2020 vieram diretamente do presidente da República ou de um de seus filhos. Em outra pesquisa, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) registrou um aumento do número de agressões ao jornalismo no mesmo ano e provou que o campeão das aleivosias é Jair Bolsonaro.

Um presidente liderando campanhas anti-imprensa é um atentado ambulante à Constituição. Os jornalistas brasileiros não se afastariam do seu dever de objetividade e independência se exigissem, em bloco, a destituição de Jair Bolsonaro.

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