quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Profanar o Holocausto

Na porta do campo de concentração de Buchenwald reza a frase “Jedem das Seine”. A cada um o seu. Era isto que era prometido à entrada aos que aqui chegavam, fossem judeus, ciganos, homossexuais, comunistas ou renegados. A estes seres humanos estava reservada a tortura, o sofrimento atroz, as experiências sádicas, a violação, a doença, o trabalho até à morte. Tudo aquilo, ou apenas aquilo, a que, no entender dos nazis alemães, tinham direito.

Tinha 16 anos quando passei as portas deste que foi o maior campo dentro das fronteiras alemãs, junto a Weimar. A ironia perversa e cruel desta mensagem, ainda pior do que a famosa frase que está inscrita em Auschwitz e que prometia a liberdade pelo trabalho, foi algo que nunca consegui processar. A desumanização absoluta está ali: a soberba da superioridade e a malévola segregação do outro, que era visto como se fosse de outra espécie, um animal inferior a quem “o seu” só podia ser aquilo. Exterminado da face da Terra.

Ninguém sabe como vai reagir depois de uma visita a um campo de concentração. Eu fiquei, não encontro expressão melhor, enojada. E incrédula. Como foi possível?

Recordo-me que me esfreguei debaixo de água como se quisesse arrancar o que trazia colado na pele. O pó, o ar para sempre contaminado do Mal, as imagens que me pairavam na retina, com os sapatos, os óculos, as dentaduras, os brinquedos de bebés, os documentos pessoais, os pijamas às riscas. Os fornos e as câmaras de gás não me impressionaram tanto – suponho que já estava preparada para elas. Mas as imagens que me fizeram perceber que, atrás de cada um destes 280 mil números que passaram por ali, estava uma pessoa real, foram demasiado para uma teenager a quem, apesar de tudo, o tema da Shoah não era estranho. Estudei-o muito na Escola Alemã, onde assisti quase diariamente ao ato de contrição de um povo que, nos anos 80, ainda tinha uma ferida social bem aberta e carregava essa enorme culpa, involuntária, aos ombros.



Cresci, pois, a respeitar a memória do Holocausto e a dar como garantida a indignação em relação às atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial. Tive durante anos como certo que esta era uma das poucas coisas que teria em comum com qualquer pessoa que encontrasse pela frente. Uma espécie de território sagrado de união entre povos. Bastaria ser Humano para recusar, com todas as suas vísceras, o que de tão desumano ali aconteceu.

Estava, porém, redondamente enganada. Pura ingenuidade pueril. Não só o Holocausto não é já um território sagrado de respeito e lembrança, como há mesmo quem hoje o relativize e menorize.

As livrarias estão repletas de livros de ficção sobre o tema, que virou um indigno filão comercial (O tatuador de Auschwitz, A Bailarina de Auschwitz, O Rapaz que Seguiu o Pai para Auschwitz, O Violino de Auschwitz, Os Bebés de Auschwitz, O Mágico de Auschwitz, só para citar alguns…). Muitos destes autores autores, como José Rodrigues dos Santos, desdobram-se em infelizes contextualizações onde tecem considerações criativas sobre o que se passou dentro daqueles muros. Lamentável é pouco.

Mas o que mais me surpreendeu é perceber como o Holocausto pode ser, afinal, relativizado. O território comum de indignação deixou de existir, porque no Século XXI, nestes tempos de ignorância, superficialidade e raiva incontida, o Holocausto foi politizado.

Nas trincheiras das redes sociais, onde o mundo é dividido por fações e se separa entre a direita e os comunistas, o horror do nazismo passou a ser, digamos assim, menos horroroso. Deixou de ser o tal território sagrado e comum de indignação, para entrar no campo dos acontecimentos discutíveis. Em vez de se baixar a cabeça por respeito, atira-se com um “sim, mas” ou um “então, e”.

Hoje (dia 27) foi o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, que marcou os 76 anos da libertação de Auschwitz. E hoje, ao navegar pelas redes, senti um pouco do mesmo asco que experimentei, aos 16 anos, ao passar as portas de Buchenwald. Li, numa descida ao abismo do novo normal, centenas de comentários a desdenhar da importância de recordar o Holocausto e a tentativa de exterminar todo um povo por motivos raciais. A menorizá-lo quando em comparação com os atos cometidos por comunistas russos e chineses. A insultar os autores dos posts como se, ao lembrarem o Holocausto, estivessem a fazer uma banal declaração política anti-fascista e não uma declaração humanitária. A contestar o que se passou, como se os crimes do nazismo fossem simples matéria de opinião.

Vale a pena passar, por exemplo, pela página de Facebook do humorista Eduardo Madeira e ler os comentários ao seu post de homenagem. É importante fazê-lo para se perceber porque é que António Guterres veio hoje dizer que “após décadas na sombra, os neonazis e as suas ideias estão a ganhar terreno”. Está tudo ali. E é mesmo tenebroso.

Sim, mais de 20 milhões de pessoas foram mortas durante o regime de Stalin e nos gulags russos, morreram entre 7 a 10 milhões na grande fome do Holodomor na Ucrânia Soviética entre 1932 e 1933, e estimam-se que tenham morrido mais de 40 milhões de pessoas nos campos chineses de Mao Tsé-Tung durante o Grande Salto em Frente, entre 1958 e 1962. Num tétrico campeonato de mortos, Mao e Stalin são ainda piores do que Hitler. Mas vamos ver se nos entendemos: não há aqui exterminadores menos maus. Há só tenebrosos assassinos em massa. Todos eles.

Eu não sei o que temos pela frente. Temo, confesso, cada vez mais por onde nos levam estas auto-estradas do ódio e da ignorância. Mas um mundo onde, num dia em que alguém chora os seus filhos assassinados, há quem responda com um “então e os filhos mortos dos outros” não pode ir por um bom caminho.

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