O presidente comete mais um crime de responsabilidade. Até a minha coluna passada, contavam-se 10. Agora, 12. Responderá por eles no tempo possível. À maneira cabocla, o coronavírus revelou a existência de um ‘deep state’ no Brasil. Pela Saúde, fala o ministro Luiz Henrique Mandetta. Pelo ordenamento geral, o general Braga Netto, da Casa Civil.
Governam o país. À margem, vitupera Bolsonaro, estimulando os perdigotos da desordem e da tragédia, prenhes de vírus. Governa o Bolsolavistão. Ademais, a Constituição reconhece a existência de um vice-presidente também eleito: general Hamilton Mourão. A Carta e a lei 1.079 trazem o regramento necessário para que a República sobreviva a vontades que a aniquilariam.
Entendo. Não é mesmo fácil a um presidente ter de vir a público para anunciar que, em alguns meses, de 100 mil a 240 mil cidadãos podem morrer vítimas da Covid-19, obrigando-se ainda a alertar que, sem medidas de distanciamento social, a cifra aponta para catastróficos 2,2 milhões.
Foi o que fez Donald Trump na terça. Pela primeira vez, o histrião pareceu um estadista. Economizou nos esgares. Terá de acertar contas com o povo americano. Até havia pouco, nos seus discursos, a doença era só uma gripe provocada pelo ‘vírus chinês’, e os riscos que corriam os EUA não passavam de um fantasma brandido por democratas para prejudicar sua campanha à reeleição.
Sua plateia se divertia a valer, com risos brancos, robustos e corados. Muitos estão agora contaminados, internados ou mortos. Não é justiça divina. Deus tem outros afazeres. É a educação pelo vírus. Até Trump é capaz de aprender.
O presidente dos EUA e a maioria dos líderes mundiais deixaram-se convencer pelo estudo liderado pelo Imperial College de Londres, que estimou o impacto da doença em 202 países, incluindo o Brasil. Por aqui, anteviu-se a morte de 1,15 milhão caso se adotasse o padrão milanês de combate ao vírus, como prega Bolsonaro.
As advertências do Imperial College foram referendadas por modelos matemáticos de especialistas dos EUA, da Europa e da Índia, entre outros países. Bolsonaro, em quem a revista inglesa The Economist —liberal, de direita!— tascou a pecha globalmente inapagável de ‘BolsoNero’, dispõe de suas próprias certezas.
À ciência, opõe as convicções de um fatalista tragicômico. Duas delas: “Todo mundo morre um dia” e “brasileiro tem de ser estudado porque pula no esgoto e não acontece nada”. A qualidade de um debatedor ou de um formulador de políticas públicas também se mede pelos argumentos irrespondíveis que é capaz de esgrimir.
Nota em defesa de Nero: nem tocou fogo em Roma nem foi dedilhar sua lira enquanto a cidade ardia, como no horrível filme ‘Quo Vadis’, baseado em romance ainda pior.
Já o nosso imperador lembra, às vezes, de fato, o Nero tresloucado que Suetônio, precursor dos blogueiros da difamação, inventou em ‘Os Doze Césares’, um clássico.
Bolsonaro não está só. O ditador Alexander Lukashenko, que governa Belarus desde 1994, defende que se combata o vírus com sauna e vodca. Gurbanguly Berdimuhamedow —não tente decorar—, que tiraniza o Turcomenistão desde 2007, proibiu a imprensa e os indivíduos de escrever ou pronunciar “coronavírus”. Jornalistas devem ainda evitar o vocábulo “problema”. Uma imprensa sem viés ideológico.
“Eu quero que cada americano esteja preparado para dias difíceis. Nós vamos passar por duas semanas muito brutais”, afirmou Trump ao reiterar a necessidade das medidas de isolamento social. Bolsonaro prefere passar adiante um vídeo que convida os quartéis a dar um golpe no Bolsolavistão.
Não vai ter golpe, vai ter lei. Melhor não morrer nem de vodca nem de vírus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário