quarta-feira, 29 de abril de 2020

O pessoal contra o impessoal

Somos editados por nossas culturas e sociedades. Por nossas épocas, moralidade e — eis um óbvio ululante sempre olvidado — por nossos idiomas, que inventam a nossa realidade. Ter consciência do mundo, como ensina Shakespeare, é saber que se entra num drama que existia antes de nós; que nele atuamos e que um dia vamos deixá-lo.

Para variar, eis mais uma crise: o presidente usou mais uma vez contra si mesmo o seu bacamarte. Eu já sugeri nesta coluna como o suicídio político faz parte do inconsciente brasileiro. Sua data oficial é o 1808, quando a Corte portuguesa fugiu de Napoleão e aqui consolidou um estilo de vida aristocrático e escravista, mas a isso seguiram-se outras “renúncias” e impedimentos.

A divergência entre Bolsonaro e Moro é uma reedição de nossas dificuldades de aceitar o poder discreto e autônomo dos regimes republicanos. Nas monarquias absolutistas, como a de Dom João VI e na do modelar Luiz XIV, o Rei Sol, Estado e sociedade estão integrados. O governo é uma família: ser rei não é um cargo disputado, é um papel predestinado. Na realeza, o legal e o circunstancial se fundiam no “sangue azul” e num indiscutível “direito divino”. Reis e nobres eram "donos" do reino. Não se governava por consentimento eleitoral, mas através de um elo com o sagrado.



O republicanismo mudou tudo. Como revela Tocqueville na sua etnografia da América, a democracia criou uma sociedade movediça e consciente de si mesma. As motivações pessoais entram em óbvia colisão com as demandas dos cargos públicos. Nos Estados Unidos, cargos públicos não podem ser acumulados e são vistos como "serviços" — quem os aceita deve abrir mão de sua vida privada.

Nas repúblicas, cada papel público tem sua área de decisão protegida de interferências. Foi essa igualdade livre de pessoalismos que tanto assombrou o lado nobre de Tocqueville quanto o meu lado relacional e familístico de brasileiro branco, machista e de classe média quando vivi a experiência americana. Chocou-me saber que era bom ficar sozinho e que o ideal era ter sua própria opinião, e não ser um papagaio de sabedorias alheias. Assustou-me, igualmente, a vivência rotineira do limite e, sobretudo, do concordar em discordar. Algo inédito, mas que — espero — esteja nascendo no Brasil.

Não sei quantas vezes um presidente interferiu com superintendentes da PF. Noto, porém, que foi esse diálogo espúrio entre Estado e empresas que inventou a Operação Lava-jato, conduzida impecavelmente por Sergio Moro. As interferências corroem a igualdade e o anonimato relativo, mas crítico, das democracias. Quando ele é obscurecido ou ideologizado, como foi o caso dos governos petistas, viu-se que constituíam o tumor de protagonismos escusos e o berço da corrupção.

Eu fiz um estudo pioneiro do “você sabe com quem está falando?”. Lívia Barbosa analisou o seu contraponto: o “jeitinho” que tudo resolve. Tais brasileirismos rejeitam o impessoal e o anonimato imprescindíveis numa república.-

O conflito do magistrado com o presidente tem a ver não com a intenção de mudar. Não há como esconder que o projeto intenta “blindar” as investigações dos filhos de um presidente eleito para liquidar privilégios, mas que insiste em governar de modo absolutista.

Numa república, nada é mais delicado do que os cargos ligados aos limites da liberdade. Se as polícias sofrem interferências e têm elos extraoficiais com os poderosos, cria-se uma democracia selvagem, muito pior que o capitalismo que nasceu sem pai e, principalmente, sem mãe. Mas cujos abusos são corrigidos pela fidelidade à igualdade contra a sua brutal e constitutiva impessoalidade. A crise reitera esse combate do pessoal e de um aberto familismo, contra a impessoalidade estruturante das democracias.

Assistir em pleno século XXI a um enredo já equacionado no século XIX — um filme protagonizado por um presidente referendado com a promessa de liquidar esse personalista pilar da “velha política”, contra o ministro sem o qual ele jamais teria sido eleito, já que ambos queriam o controle do familismo aristocrático e ilegal — não é apenas ofensivo e deprimente. É uma merda!
Roberto DaMatta 

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