A um mês das eleições dadas como perdidas pelas pesquisas, resta ao bolsonarismo, em sua obsessão de virar a mesa, apelar para a encenação do segundo ato de “O brado retumbante” no 7 de setembro. A retórica de criação de um clima favorável ao golpe contra a democracia passou a concentrar suas forças nas comemorações do bicentenário da Independência, com desfile ostensivamente militarizado na orla de Copacabana. Será a última oportunidade para exibição pública dos fogos de artifício do arsenal golpista.
Coerente com a prática do governo e as ações de seus adeptos, o projeto bolsonarista visa falsear a realidade e intimidar o público, com a ostentação de aparato bélico exibicionista e dispendioso. Haverá salvas de tiros de canhão, parada naval e voos da esquadrilha da fumaça. No mesmo dia, usando um suporte massivo de vídeos espalhados nas redes, um coral repetirá a ameaça de que “Se precisar, iremos à guerra”.
Estarão armados para isso. Não se deve duvidar que armas poderão ser disparadas e “inimigos”, atingidos. Melhor ficar em casa neste feriado da quarta-feira, 7. O espetáculo foi programado pelas Forças Armadas para ter a fastidiosa duração de oito horas, com ocorrências em vários pontos da cidade. O presidente chegará de helicóptero para o encerramento solene do desfile na arena da praia, defronte ao Forte de Copacabana, de onde um dia saíram para o combate e a morte os 18 do Forte.
Ao final da tarde, hinos e cânticos serão entoados, numa cerimônia digna das celebrações organizadas pelos camisas negras italianos, grupo paramilitar fascista, fiéis seguidores de Benito Mussolini. Montados em suas motos, os Cavaleiros da Ordem do Mito aclamarão seu líder e repetirão com ele a palavra de ordem do dia: “Ditadura ou Morte”.
A reencenação farsesca em Copacabana do episódio da Independência, 200 anos depois, se dá no momento em que o ato original interpretado por dom Pedro 1º às margens do Ipiranga está sendo posto em revisão por historiadores brasileiros. Novos livros discutem o papel e o significado para a Independência do famoso “brado retumbante de um povo heroico”, que foi parar na letra do Hino Nacional.
O Imperador teve ali seu ponto culminante como sujeito da História, assim retratado na famosa tela Independência ou Morte!, de Pedro Américo, da qual o povo está ausente. O protagonismo de dom Pedro está em reavaliação pelos novos estudos. Não se trata de negar ao Imperador o alcance de seu gesto teatral, mas de retirá-lo do pedestal a que foi alçado pela literatura acadêmica conservadora.
A história da luta pela emancipação foi construída num processo longo e difícil, que começou antes e terminou depois do grito de dom Pedro em 1822, cercado por pequeno grupo de militares. Passou pela Conjuração Baiana, pela Revolução Pernambucana, revoltas influenciadas pelo iluminismo francês. Em seu caminho, marcado pela participação popular, pontilharam rebeliões violentas reprimidas pela Corte.
Esse é um dos pontos levantados por O sequestro da Independência, Cia. das Letras, de Carlos Lima Jr., Lilia M. Schwarcz e Lúcia Stumpf, que mostra como a iconografia produzida a respeito do ato contribuiu para forjar uma visão idealizada do processo de emancipação do Brasil de Portugal. Para os autores, o “sete de setembro” funciona como um mito fundacional, aquele que permite fazer as pazes com o passado, acomodar o presente e prever o futuro.
Em outro livro desse conjunto de obras questionadoras, Ideias em confronto: Embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825), da Todavia, a professora Cecília Helena de Salles Oliveira também confronta essa visão. Numa passagem, conclui que a versão oficial da Independência, que teve no grito do Ipiranga de 1822 seu momento de apoteose, foi uma construção idealizada pelo príncipe herdeiro.
Político hábil, o Imperador deixou as contradições de lado para criar em seus discursos um recorte histórico favorável. A obra desvincula a Independência de um episódio específico e rechaça a tese do continuísmo pacífico. Cita estudos recentes que apontam mais de 50 mil mortos, entre militares e civis, nas batalhas pela independência, especialmente no Norte e Nordeste.
Diferentemente do que muitos de nós aprendemos nos primeiros estudos, a luta pela emancipação envolveu outros centros além do Rio e Lisboa, enfrentou a violência em manifestações locais, contou com a participação de mulheres e negros escravizados e ganhou corpo em meio a uma crise econômica e fiscal de grande magnitude.
Na minha mais remota lembrança do 7 de setembro, eu estou marchando ao lado dos meus colegas do Grupo Escolar Modelo, em Goiânia. Vestido com o uniforme de gala azul e branco, passamos ao lado do Coreto para fazer uma parada em frente ao Palácio das Esmeraldas, na Praça Cívica, ao som do repique da bateria. Meus inimigos declarados nessa parada militar não eram os portugueses, mas os alunos do rival Grupo Escolar Padrão, aquele de onde se “entrava burro e saía ladrão”. A rima galhofeira para o meu Grupo Modelo era de que “entrava burro e saía camelo”. A Independência não passava daquela imagem que eu vira na tela de Pedro Américo: o monarca montado eu seu cavalo, cercado por outros cavaleiros, levanta a espada acima da cabeça, num gesto simbólico de conclamação. Não ouvia, mas imaginava que ele estivesse gritando “Independência ou Morte”. Dois séculos depois, Bolsonaro quer transformar o 7 de setembro na arena de Copacabana num ato contra a democracia, ecoando o brado de “Ditadura ou Morte”.
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