Desde 1822, tivemos dois imperadores, 38 presidentes, cerca de 10 mil parlamentares, milhares de intelectuais, mas a pobreza continua porque não desperta sentimento político de solidariedade, nem entendimento conceitual correto. A insensibilidade dos dirigentes em relação ao sofrimento dos pobres e a lógica equivocada sobre como nossos intelectuais explicam e propõem como superar a pobreza, explicam a pobreza da independência. O problema está no coração dos políticos e na mente de seus assessores: os primeiros não sofrem por causa da pobreza, os outros não entendem a real dimensão da pobreza, as causas e os meios para superá-la. A pobreza foi sequestrada pela elite no poder e pelo pensamento econômico. Não é vista como problema fundamental a ser enfrentado, e acredita-se que o crescimento da economia elimina a pobreza ao distribuir a renda ampliada.
Da mesma forma que, por 350 anos, a minoria branca e livre não se importou com os escravos, nem entendeu a importância da abolição para o país, há 135 anos, as classes privilegiadas aceitam com naturalidade o abandono de brasileiros na exclusão social da pobreza. Se os abolicionistas pensassem como economistas, a escravidão existiria até hoje, esperando o crescimento econômico. A escravidão foi abolida ao ser tratada como questão ética. É assim que a pobreza deve ser tratada. A superação da pobreza vai exigir que também seja tratada como imoral, uma vergonha a ser abolida.
Ao mesmo tempo, será preciso mudar o enfoque técnico de como é enfrentada. A principal causa da pobreza é a pobreza no entendimento de sua causa. A pobreza não decorre da falta de crescimento e renda na economia, mas por falta de comida, moradia, água, esgoto, atendimento médico, transporte urbano, escola, segurança. Desses itens, apenas comida e transporte dependem da renda pessoal, o resto exige políticas sociais e serviços públicos do Estado. Para solucionar a questão da pobreza, é preciso perceber que, como a escravidão, ela afeta não apenas os pobres, mas amarra toda a sociedade.
Depois de 200 anos, a independência precisa criar o que Joaquim Nabuco chamou, no século 19, de "instinto nacional" pela erradicação da escravidão. Agora, pela superação da pobreza com vontade e missão nacionais, e com o entendimento correto das políticas sociais e dos serviços públicos a serem ofertados a todos, com uma estratégia que assegure a cada um o que precisa para sair da pobreza. Entre eles, o mais importante é a educação de qualidade para todos. A sua qualidade aumenta a produtividade e o tamanho da renda nacional; a equidade para todas as crianças permite distribuir a renda, conforme o talento e o poder de pressão das massas pobres para obterem novos benefícios. Educação de qualidade para todos quebra o círculo vicioso que caracteriza os 200 anos de independência omissa diante da pobreza, tanto quanto foi diante da escravidão.
A pobreza de um pobre decorre da falta do essencial para sua sobrevivência plena. A pobreza da própria pobreza está na falta de sentimento político solidário e de um conceito técnico correto para explicá-la e superá-la. Até hoje, não tivemos governo com propósito de assegurar a cada família o necessário para não ser pobre. A pobreza foi sequestrada pela economia, no lugar de a economia ser instrumento da estratégia de sua erradicação. E em consequência a economia seria dinamizada, porque a pobreza é uma das causas do estancamento do progresso econômico, social e civilizatório, tanto quanto foi a escravidão ao longo de 66 dos 200 anos de independência.
Os Estados Unidos colocaram a missão de chegar à Lua antes das comemorações dos 200 anos de sua independência, o Brasil precisa definir sua missão a "segunda abolição" para as primeiras décadas de nosso terceiro século que se inicia amanhã. Para tanto, precisa querer politicamente superar a pobreza e entender corretamente as causas e as estratégias para a superação. Ao tolerar a permanência da pobreza, nossa independência é pobre: faz pobre milhões de brasileiros e esbarra no progresso.
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