As classes dominantes brasileiras, herdeiras do colonialismo português, não importaram somente “estética e muito pouco além disso”, sobretudo, perpetuaram e atualizaram as lógicas e tecnologias político-raciais de desumanização daqueles considerados “sub-humanos”, “descartáveis”, “sem alma”. Ou seja, os pobres, periféricos, excluídos, subalternos, escravizados, os trabalhadores – as populações negras, não brancas e ameríndias. Portanto, para essa “elite”, que necessita das violentas “estética” e ideologia racistas, como forma de conservação do seu statu quo, estas populações são passíveis de genocídio, tortura, chacinas e massacres. Aos “seus serviços”, das tropas coloniais até à “burocracia armada” do Estado hoje (polícia, policiamento e encarceramento), matam impunemente os “sub-humanos” e sem precisarem de justificar nem serem responsabilizados.
A “lei informal” transmitida no treinamento policial é: identificou algo parecido com um fuzil nas mãos de um morador de comunidade, “atire para matar”, todos ali são suspeitos – mesmo que seja um guarda-chuva. Por outras palavras, é pena de morte. A presunção de inocência só existe para os condomínios dos ricos, onde muitas mães daqueles jovens mortos pela polícia vem trabalhar todos os dias, garantindo o trabalho de reprodução social de setores daquela “elite” que interiorizou e continua a “lucrar” com o racismo. Para se ter uma noção de uma política concreta, nos anos 90 um dos governadores do RJ criou as “gratificações faroeste”, ou seja, quanto mais o polícia matava, mais aumentavam os seus rendimentos mensais; recentemente tentaram recriá-las, mas ficou sem efeito.
As imagens dos mortos enfileirados, seminus, alguns corpos desmembrados – mesmo que fossem todos do Comando Vermelho (CV) – não provocaram uma grande repulsa nacional por aquele morticínio planeado pelo Estado. Isso significa que o que impera é uma generalizada dessensibilização e indiferença social; no caso do Rio de Janeiro, existe até considerável aprovação popular à “operação”. E muitos setores “progressistas” apoiaram e legitimaram o morticínio ou demonstraram uma indignação seletiva e com ressalvas. Isto é, capitularam completamente à lógica política-policial aplicada no país nos últimos 40 anos. O Presidente Lula da Silva, num gesto com preocupações eleitorais e de despolitização, a surfar no dito “populismo penal”, sanciona uma lei que endurece o combate ao “crime organizado” – a ironia é que o idealizador da lei foi o seu algoz, Sérgio Moro – e envia para o Congresso Nacional um “Projeto de Lei Antifação”. Por outras palavras, Lula está a legitimar a forma (fracassada) de combater a violência e a criminalidade no Brasil, as mesmas estratégias punitivistas e repressivas que a direita e a extrema-direita têm como pilar central na sua retórica política e ação governativa. O ponto central é que esse tipo de “consenso” e indiferença só evidencia que na História do Brasil a política de extermínio dos “indesejados”, nas suas diferentes formas, tem sido parte da nossa realidade e do nosso imaginário social, desde a colonização até à conformação do capitalismo brasileiro vigente, seja na sua forma de ditadura empresarial-militar ou representativo-liberal, etc.
Imagino que alguns leitores já estejam a pensar: “Mais um defensor de bandido!” Responderia que não, apenas levo os estudos científicos sobre as formas de combater a economia política do crime e o meu antirracismo às últimas consequências, assim como defendo a vida e a dignidade humana, principalmente daquelas pessoas que ao nascer são “condenadas” à morte, à miséria e à exclusão social pela estrutura racial-capitalista que forma o Brasil na sua História. Questionemo-nos. Qual é a “racionalidade” ou o “cálculo” que justifique um jovem “escolher o mundo do crime”, que lhe reserva uma vida curta (a morte) ou anos privado de liberdade? Não será a falta de perspetiva de futuro? De capacidade de sonhar com uma vida melhor? Que outro mundo é possível? Penso que se começarmos a questionar-nos com perguntas desse tipo e combatendo contra a ideologia racista que aprendemos nas diferentes estruturas sociais e instituições, talvez tenhamos a oportunidade de entender que os “excluídos” no apartheid dos morros são incorporados pela economia política do crime como força de trabalho barata e descartáveis, enquanto os poderosos e verdadeiros chefes do “crime organizado” estão a viver nos condomínios de luxo, quiçá em palácios de governo, ou a trabalhar no centro do mercado financeiro brasileiro (Faria Lima) ou nalgum banco em Londres.
Esse tipo de organização – Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC), etc. – surgiu dentro do sistema carcerário brasileiro, visando reivindicar melhores condições e organizar o espaço prisional, pois as cadeias não “ressocializam” ninguém, são mais uma máquina de moer seres humanos e recrutar pessoas para o crime – o PCC emergiu com maior força após o massacre do Carandiru. Bruno Paes Manso escreveu um recente artigo a diferenciar os dois grupos. O ponto decisivo é que essa economia política do crime (EPC) identificou nessas formas coletivas de organização a possibilidade de transitar do assalto a banco (no caso do CV, 1980), para intermediação e também comercialização de cocaína, que vinha da Colômbia e era despachada dos portos brasileiros para a Europa. Mas como esses grupos poderiam garantir o transporte “seguro” de uma mercadoria tão valiosa, mas ilegalizada? A “solução” foi armarem-se fortemente. Como conseguiriam acesso a armas fabricadas na Alemanha, na Bélgica e nos EUA, entre outros? É nesse contexto que aparece um novo nicho de comercialização no RJ, o das armas com alto potencial de letalidade e imponente; a forma mais rápida e fácil comprar o armamento foi com setores do Estado que têm acesso às armas, as forças de polícia e do Exército. Ou a partir da política de liberalização de armas do governo Bolsonaro. O mesmo vale para as munições.
Às vezes, é preciso relembrar o óbvio. Os fuzis não brotaram do chão nem caíram dos céus nos morros do Rio de Janeiro. Existe todo um complexo, lucrativo e sofisticado comércio de armas e munições que as coloca na mão daqueles jovens pobres e na sua maioria negros. Por que será que a polícia não investiga esse comércio (necromercado)? Não haveria muitos agentes do Estado implicados nesse processo? Grandes empresários “de bem”? Não existe nenhuma relação entre contravenção (“jogo do bicho”), a polícia e as milícias (grupo formado por polícias ou ex-polícias) no RJ?
Outra face desse processo é que a economia política capitalista do crime entendeu que estando fortemente armada permitia ter o controlo dos territórios em que se instalava – evidentemente com a permissão e a organização estatal, uma “regulação armada” dos territórios. Quer dizer, existe uma relação entre o alargamento do CV e a própria expansão urbana da Cidade Maravilhosa.
É a partir desses territórios sob sua regulação armada que a EPC comercializará parte dos estupefacientes que transportava, mas no decorrer de tempo colocou em prática a estratégia capitalista de “diversificar os negócios”, aprendendo com os “rivais” das milícias que tudo se poderia transformar em serviços vendáveis dentro das comunidades, desde a “segurança” à permissão para abrir um comércio, a internet, a luz, a água, o gás, os terrenos e moradias, etc.
O que pretendo salientar é que perceber a questão de território é primordial, pois, de um lado, aquelas populações que lá vivem sofrem por falta de políticas públicas universais e projetos de governo transformadores, que viabilizem ter uma vida em que a privação de necessidades elementares não seja uma constante. Por outro, as ditas organizações criminosas também os subjugam, matam e espoliam de forma quotidiana. É nessa estrutura social contraditória que a EPC tem condicionado e recrutado muitos jovens, que, sem perspetiva de uma vida longe da pobreza e da miséria, aderem ao universo criminal – um dado revelador da chacina de 28 de outubro: um terço dos mortos não tinha o registo do nome do pai nos seus documentos de identificação.
Além das questões de longa e média duração que procurei sumarizar, existem alguns elementos da conjuntura que são relevantes. Como a sequência de erros táticos da extrema-direita/neofascista brasileira: Eduardo Bolsonaro foi para os EUA conspirar junto da Administração Trump, para sancionar juízes e aplicar alta tarifas sobre o Brasil, com o objetivo de evitar a condenação de Jair Bolsonaro por golpe de Estado – sem efeito; assim como a tentativa dos deputados bolsonaristas de aprovar dois projetos de emenda constitucional (PEC), um para amnistiar os golpistas (incluindo Jair Bolsonaro) e outro para inibir a investigação judicial aos deputados e políticos.
O resultado desses equívocos políticos, como o ataque à soberania brasileira por Trump e pela família Bolsonaro, permitiu que o governo Lula retomasse a iniciativa da agenda política do país. Porque a gestão “Lula 3” até àquele momento encontrava-se em crescente impopularidade, uma das consequências da aplicação de uma política económica neoliberal – “austericídio fiscal”, como categorizou Gleisi Hoffmann (ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e ministra do governo). Relativamente aos projetos de lei, a esquerda brasileira (moderada e radical) teve a iniciativa de retomar grandes manifestações de ruas, até então sob a hegemonia do bolsonarismo, a fim de demonstrar contrariedade às PEC. Em síntese, a extrema-direita brasileira viu-se na defensiva, por serem identificados por amplos setores da sociedade como “traidores da pátria”, “anti-Brasil” e “defensores de bandidos”.
É nesse contexto que a carnificina “determinada” pelo governador Cláudio Castro e o seu secretário de segurança pública tem forte indícios e relação com o facto de o bolsonarismo estar encurralado politicamente. O que os levou a iniciar uma contraofensiva, visando retomar a agenda política do país, colocando na ordem do dia uma pauta em que eles repetem “respostas” simplicistas (“guerra às drogas”) e, sobretudo, conseguem mobilizar vários setores populares, especialmente nas grandes cidades, afetados e atingidos quotidianamente pela insegurança, o medo, a violência direta (assaltos, furtos, assassinatos) e o controlo de territórios pela economia política capitalista do crime (CV, PCC, etc.).
Por outro lado, eles sabem (inconscientemente ou não) que a “esquerda” que capitulou ao neoliberalismo e à austeridade não tem “solução” para a questão de segurança pública – basta examinar a letalidade policial em governos estaduais ditos progressistas –, porque para atenuar essa expressão da questão social, repito atenuar, seria necessário um robusto investimento público em habitação, saneamento básico, escola, saúde, assistência social e uma multiplicidade de políticas sociais, mas que o Novo Arcabouço Fiscal de Lula-Haddad não permite – o gasto financeiro do Estado permanece intocável.
A dimensão mais perigosa dessa contraofensiva do bolsonarismo é que ela pretende importar, na forma de lei e retórica política, a gramática ideológica trumpista dos “narcoterroristas”, para legitimar os assassinatos indiscriminados que o Ministério da Guerra dos EUA tem realizado no Pacífico – basta colocar a etiqueta de que são traficantes-terroristas. A família Bolsonaro já encetou a cantilena de que Trump poderia atacar barcos no Brasil, abrindo um precedente que poderá legitimar um ataque americano ao país, em nome do combate aos “narcoterroristas”, assim como o governador do RJ também contactou o governo Trump para que este reconheça o CV como “grupo terrorista”.
Nota final. Suspeito de que o genocídio em Gaza tenha aberto um processo histórico em que a dessensibilização social é de tal ordem que “já não precisamos de campos escondidos para praticar genocídio [e chacina], basta a normalização” e a interiorização desse novo-velho modo de vida. Um dos sinais de que a historiografia nos ajuda a compreender no processo de fascistização é que a violência estrutural passa a ser visível e se torna uma estética política. Há muitas lições políticas para retirarmos tanto de Gaza como do Rio de Janeiro, se quisermos um futuro menos sombrio.
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