Nesse cenário existem dois atores — o ex-presidente e seus simpatizantes radicais. A mão e a luva. O político não existiria sem eles. Suas parvoíces, insultos e preconceitos encontram eco — e voto — numa parcela da população.
O capitão deu rosto ao “tiozão do zap”, o personagem doméstico que repassa fake news e tem opinião até sobre embargos infringentes. O tiozão pode ser o tio, o cunhado ou aquele parente que nunca se interessou por política. Claro que é um comportamento importante, porque traz ao debate público personagens ausentes. Mobiliza.
Desde a vizinhança do golpe de 1964, não se via a movimentação de massas da direita. Passeatas como a Marcha da Família com Deus deixaram de ocorrer até o bolsonarismo. Apenas o campo progressista conseguia reunir multidões — principalmente por ser oposição aos militares. O delírio do líder, que parecia fraqueza, mostrou-se a força motriz para reativar toda uma tradição política adormecida. O “tiozão do zap” ouviu o chamado e foi para a rua.
Com a tentativa do golpe de 2022 desmascarada e condenada, fica um duplo legado. De um lado, o eleitor escolheu mal seu representante. De outro, a democracia mostrou vivacidade. Não foi a primeira vez — em ambos os casos. Nestes 40 anos de vida democrática, passamos por dois impeachments, quatro presidentes presos, sob diferentes acusações, e agora há dois deputados federais foragidos da Justiça. Além de um terceiro boquirroto já à beira de ganhar sua pena. O saldo poderia ser negativo caso o golpe tivesse ocorrido e não houvesse a apuração dos crimes. Nada disso aconteceu. As instituições mostraram-se em atilado estado de prontidão.
Entre os simpatizantes bolsonaristas, a reação foi tímida — por certo envergonhados pelo ato humilhante de meter ferro na tornozeleira. O ex-presidente não criou o preconceito ou a paranoia, mas deu a eles licença para sair do armário e um idioma comum. Ele é menos um líder e mais um sintoma que se tornou catalisador. Muitos ouvem vozes. São sintomas da democracia. Até escolher mal faz parte. E o Brasil escolheu mal repetidas vezes — não só com Bolsonaro.
Se existe uma força institucional que barrou o golpe de direita, há também uma inércia ideológica à esquerda que impede mudanças profundas. Ambos os extremos revelam fanatismos distintos: um reza para pneus, outro para estatais.
Já na redemocratização a população colocou na Presidência a direita, a extrema direita, a centro-esquerda e a esquerda. São sinais de um arcabouço maduro. Houve prevalência do petismo em razão de um líder carismático. E da infelicidade de parte do eleitorado se identificar com ideias como o estatismo e o patrimonialismo lulista. Num país onde se reza para pneus, talvez não seja surpresa que se reze também por estatais deficitárias.
Lula e seus simpatizantes são antiquados e ainda ajoelham pela cartilha econômica do velho partidão de guerra. O empreendedorismo digital não contaminou a maioria da sociedade, principalmente a intelectualidade. O choque de capitalismo defendido por Mário Covas em 1990 (!) encontrou eco apenas no governo FH. Mesmo assim, o campo petista bombardeou as privatizações. Telefonia, bancos estaduais — tudo foi atacado. Agora, olhamos para a lambança do BRB de Ibaneis e de novo lembramos como a política faz mal ao sistema financeiro.
Embora as instituições mostrem vigor — mesmo acossado, o BC liquidou o Master —, o aparelho eleitoral parece cada vez mais corrompido e distorcido. Culpa da classe política, interessada na manutenção de um mecanismo incapaz de representar a população brasileira. É um modelo pensado para afastar a sociedade do bom debate público.
E assim seguimos, um país que consegue prender seus presidentes, mas é incapaz de se livrar de seus piores vícios. As mesmas instituições que silenciam as “vozes” da tornozeleira parecem impotentes para calar a algazarra de um sistema político que grita por uma reforma sempre sufocada. O desafio não é mais salvar a democracia de um colapso — ela já provou sua força. É salvá-la de seu próprio cansaço.

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