quinta-feira, 13 de julho de 2023

O tempo mexeu com a gente

A ideia inicial era começar o assunto com o provérbio anônimo: somos mais parecidos com o nosso tempo do que com nossos pais. Mas pareceu batido demais para leitores saturados com informação difusa. A vantagem do dito inesperado é dar um flagrante no oculto. Muito difícil escrever qualquer coisa hoje sem uma certa “angústia de influência”, e desconfiar se já não é um lugar-comum esvaziado. Dá impressão de que nada mais é significativo — tudo já foi dito e lido — e pasteurizado por repetição tediosa.

Yuval Harari teme que o sistema operacional da espécie — a linguagem, enfim, o pensamento — esteja sob ameaça de captura pela inteligência artificial. Eu diria que, antes disso, na época atual, a singular subjetividade humana já foi arrancada do indivíduo. Este ser invadido, achatado e banalizado por ondas sufocantes de informações e redes sociais. Ele perdeu sua centralidade única ao vê-la espelhada na cacofonia das expressões humanas ali niveladas. O quarto golpe ao narcisismo, talvez o último, é o absurdo sentimento dos sujeitos se descobrindo clones uns dos outros.


A narrativa fotográfica da atualidade que nos cerca — que até a inteligência artificial é capaz de relatar, flagrando o indivíduo acelerado, desorientado e sufocado diante do assombro da sobrecarga de estímulos e transformações — equivale a chover no molhado. O impasse é tal que a palavra destinada à função crítica perdeu o sentido. A nova realidade ataca e neutraliza a arma que poderia enfrentá-la. Enquanto o indivíduo consciente se refugia no reduto da intimidade pessoal, onde ressuscita as questões do ser (para não esquecer Heidegger), lutando por resgatar a enxovalhada cerimônia civilizatória, o pensador crítico lança mão de outras tintas para conseguir um inesperado quadro que possa captar restos de um real boiando por aí (para não esquecer Baudrillard).

No cinema, Jim Jarmusch pôs — em “Os mortos não morrem” — zumbis e extraterrestres num cenário de mudança climática catastrófica. O policial interpretado por Adam Driver não se cansa de dizer:

— Isso não vai acabar bem.

E vai? Na vida mesma, os vivos é que não vivem — ou só o fazem sofregamente —, detendo o dinheiro que a maioria não tem. Aspiram a uma mocidade permanente, ao prazer incessante ou a uma existência eterna. Quando não é o caso de desejar — depois de destroçar a Terra — um outro planeta para morar (para não esquecer Bruno Latour), numa reedição astronômica do nomadismo predatório.

Restaria a outros a revolta sob a forma de adesão ao fascismo supostamente redentor de extrema direita, o resgate paradoxal da identidade na imersão na massa que cultua o mesmo e farsante grande líder. O esvaecimento do eu e o transtorno do sujeito têm assim uma trágica repercussão política. Tudo se parece hoje como se não bastasse o sonho ter acabado, como ainda nos afronta o pesadelo que se insinua — de forma sorrateira — entre nuvens sombrias nem por todos enxergadas.

Essas e outras descrições distópicas revelam ranzinzice pessimista ou contêm cotas de verdade — áreas de intercessão com a realidade? Seriam expressões fantasmáticas e alegóricas do que se passa no som ao redor, quando a linguagem racional e linear perdeu o viço revelador e se dissipou na banalidade dos falantes? É o dilema que surge quando lemos o último Giorgio Agamben: os humanos agora desaparecem igual ao “rosto desenhado na areia apagado pelas ondas.” Ou “a cegueira é tão mais desesperada porque os náufragos pretendem governar o próprio naufrágio”.

Se a ficção e o surreal podem revelar ou antecipar mais da realidade do que ela própria, a pintura disto assombra. Agamben diz que ser contemporâneo é saber distinguir a escuridão e as sombras do próprio tempo. No ápice de sua distopia, em “Quando a casa queima”, as cidades, as ruas e as casas estão ardendo em chamas. Vivemos num mundo que está queimando, mas não sabemos. E a chama “mudou de forma e de natureza, tornou-se digital, invisível e fria”.

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