A prática da ignorância marca desde sempre a trajetória dos déspotas. Especialmente quando eles a usam para ir de encontro a conquistas civilizatórias. Mais uma vez, e de maneira quase recorrente nesses já longos onze meses de mandato, o capitão Bolsonaro aposta na tática do “bateu, levou” para tentar impor suas vontades. Quer a ferro e fogo, a qualquer custo, empregar um dispositivo anacrônico, típico de regimes de exceção, para combater nas ruas quem ousar protestar contra o seu governo. Luta pela aprovação do chamado excludente de ilicitude, espécie de licença para matar, a ser entregue a seus batalhões de choque com a finalidade de coibir o que ele possa vir a considerar bagunça de arruaceiros. Em outras palavras: se o mandatário não gostar da pauta das manifestações públicas ou de qualquer outra ação que lhe incomode poderá mandar a tropa para cima, quebrar o pau e meter bala nos petulantes. Atirando para matar, até. Sem consequências, sem punição, sem nem ao menos processo criminal pelo delito. Lei da selva. O policial dono do fuzil que assassinou pelas costas a indefesa menina Ágatha, de oito anos, no Rio, sairia ileso de culpa nessas circunstâncias. O fato seria tratado como mero efeito colateral de operação de guerra ao tráfico. O exemplo é dramático, mas real. Passível de enquadramento na nova ordem unida. O incômodo de Bolsonaro e de sua trupe com as resistências populares aos seus ditames, deliberações e eventuais desmandos chegou ao ponto de membros do alto escalão, como o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, tratar como natural a volta de atos de cassação de direitos como o AI-5 para enfrentar a anarquia e a “quebradeira inconcebível”, segundo suas palavras. Há de se saber aonde vem ocorrendo tamanha algazarra. De outro modo, é sempre bom lembrar que os próceres do atual governo não viam qualquer ameaça ou problema quando saiam das hostes do próprio Planalto incitações e convocações sistemáticas, dia sim, outro também, para que o povo seguisse em protestos dirigidos ao Congresso e ao STF. No caso, podia. Sem ressalvas. Bolsonaro em pessoa chegou a estimular as tais mobilizações, em uma cristalina demonstração de desprezo pelos demais poderes. Ir às ruas reclamar contra todo o resto e a favor do governo, Ok — mesmo se descambar para a agitação. Agora, nada de reclamar do Executivo. Aí não, por favor, porque vira baderna! O que é isso? De forma aberta e sem constrangimento, a fragata bolsonarista vai se abastecendo de anseios totalitários. Busca qualquer pretexto para a repressão a opositores. Classifica de vândalos aqueles que são tidos como adversários ideológicos. Transforma-os em maus elementos, marginais, bandidos da pior laia, dignos das grades ou do tiro no meio da testa. Guedes insinuou a possibilidade de um revival do AI-5, da mesma maneira que o fez, semanas atrás, o filho Dudu, que queria ser embaixador em Washington. A campanha intramuros do Palácio cresce nesse sentido. O flerte com o radicalismo parece claro. Uma aberração que teria de ser coibida visceralmente, pelo bem da democracia. Bolsonaro e os seus parecem não gostar muito da tal de democracia. Embora tenha sido ele eleito diretamente pelo voto nas urnas, fundamento lapidar desse modelo de organização social.
É de uma insolência tremenda, que afronta os mais elementares princípios de liberdade do povo brasileiro, um presidente da República se arvorar em censor de manifestações. Vai além do aceitável a intransigência verificada na cúpula brasiliense que prega o uso da força ao invés do diálogo.
Da mesma lavra de medidas extremas, outra proposta de Bolsonaro estatiza, na prática, a pistolagem no campo. Isso mesmo! Ele quer que os parlamentares autorizem o emprego pelo governo federal da chamada GLO (famigerados instrumentos de Garantia da Lei e da Ordem). As GLOs são operações de segurança autorizadas pelo Poder Executivo que podem ter duração de meses. Inclui inclusive o uso de Forças Armadas em conflitos de qualquer natureza, tirando das gestões estaduais a primazia do cumprimento de decisões da Justiça. O “mito” quer as GLOs para expulsar invasores de terra e mesmo de imóveis nas cidades. Anseia também ir para cima dos quilombolas, camponeses e indígenas. Se pudesse, no seu desejo mais íntimo, varria do mapa essa gente. As palavras do mandatário são reveladoras de suas intenções rudimentares: “GLO não é uma ação social, chegar com flores na mão. É para chegar preparado para acabar com a bagunça”. E na marra vale tudo, pode-se imaginar. Ainda povoam a memória nacional as imagens do Massacre de Eldorado dos Carajás, nos idos de 1996, quando 19 grileiros sem-terra foram abatidos pela PM em um conflito armado. Mas Bolsonaro não demonstra preocupação com tais detalhes. Questionado sobre a resistência do Congresso ao tema da GLO, dobrou a aposta no pendor arbitrário que de longo tempo acalenta: “se não aprovar, não tem problema. A caneta compactor é minha”. Durma-se com uma tirania dessas.
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