É possível olhar para tudo que ocorreu em Brasília em 8 de janeiro e agir como se fosse a expressão irracional da violência das massas. Mas o que aconteceu – e provavelmente se repetirá mais à frente – não foi de fato “irracional”. Foi, na verdade, um acontecimento várias vezes previsto e anunciado: uma certa repetição do que se viu na invasão do Capitólio, em Washington. Durante muito tempo se destacou um lugar para esse acontecimento na racionalidade das lutas políticas atuais no Brasil. A questão é que essa racionalidade mudou, embora muitos prefiram não admiti-lo.
O desejo de não enxergar é tão forte que, depois das imagens muito vistas do 8 de janeiro, seguiram-se imagens não vistas, como a que registrou o que ocorreu na Praça dos Três Poderes, em 31 de janeiro passado, terça-feira. Na tarde desse dia, um senhor de 58 anos, cuja identidade não foi divulgada, ateou fogo no próprio corpo gritando palavras de ordem contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o ministro Alexandre de Moraes. O homem morreu no dia 2 de fevereiro, e a maioria da imprensa preferiu não noticiar o caso. Decisão questionável, pois apenas reforça o desconhecimento da opinião pública a respeito do momento em que efetivamente nos encontramos, marcado pela força de engajamento e sacrifício da extrema direita.
A melhor maneira de não resolver um problema é ignorar sistematicamente sua real extensão e profundidade. Mas quem segue os fatos políticos das últimas décadas se lembrará de como a Primavera Árabe começou. Em dezembro de 2010, em uma pequena cidade no interior da Tunísia, um homem se autoimolou como forma desesperada de protesto contra as extorsões que sofria da polícia e do governo local. “Isso é mera analogia sem real poder explanatório”, dirão alguns. Eu gostaria, porém, de insistir no contrário. Essa repetição com os sinais invertidos demonstra que estamos outra vez diante de uma dinâmica insurrecional, mas agora capitaneada pela extrema direita.
Nesses últimos meses, uma parte do país foi pega de surpresa pela insistência, a abnegação e o entusiasmo com que pessoas de extrema direita se mobilizaram. Achar que essa dinâmica foi rompida apenas por que agora se fez algumas prisões é simplesmente tomar nossos desejos por realidade. Vimos algo muito parecido em 2021, na sequência dos eventos ocorridos em Sete de Setembro, quando Bolsonaro fez ataques ao STF e estimulou discursos incendiários: ocorreram prisões e declarações de que o então presidente havia “ultrapassado os limites”, desarticulando com isso a sua base popular. No entanto, o que ocorreu foi outra coisa. A mobilização da extrema direita não retraiu, não arrefeceu, não acabou. Ou seja, não se deve agora, em absoluto, descartar a hipótese de que o Brasil se tornou o laboratório de uma nova fase da extrema direita mundial, a saber, justamente, a fase insurrecional.
Nesse contexto, “fase insurrecional” significa que a extrema direita mundial tenderá, cada vez mais, a operar como força ofensiva anti-institucional de longa duração. Força essa que pode se expressar em grandes mobilizações populares, em ações diretas, em formas de recusa explícita das autoridades constituídas. Ou seja, toda uma gramática de luta que até pouco tempo atrás caracterizava a esquerda revolucionária agora está migrando para a extrema direita, como se estivéssemos em um mundo invertido.
Melhor aceitar isso do que continuar com explicações “deficitárias” a respeito do bolsonarismo, como se fez à exaustão nos últimos anos. Explicações deficitárias são aquelas que colocam a causa dos fenômenos em pretensas deficiências dos agentes, como dizer que o bolsonarismo é resultado do ressentimento (deficiência psicológica), do obscurantismo e das fake news (deficiências cognitivas), do ódio (deficiência moral). Explicações dessa natureza servem mais para corroborar a crença do analista em sua pretensa superioridade moral e intelectual do que para auxiliar na compreensão efetiva de um fenômeno sociopolítico de inegável complexidade.
Não deixa de ser significativo que a extrema direita descreva a esquerda brasileira recorrendo aos mesmos termos. Aos olhos da extrema direita, a esquerda é obscurantista, ideologicamente cega, ressentida e marcada pelo ódio. O que mostra o caráter eminentemente estratégico desses “conceitos analíticos”. Eles são peças de um embate retórico e, no máximo, descrevem efeitos, não causas. Ninguém passa meses tomando chuva diante de um quartel movido pelo ressentimento, mas porque acredita fazer parte de um movimento real de ruptura e transformação que irá “passar o país a limpo” e reconstruir a história brasileira, o que exige sacrifício. Há um sistema positivo de motivações movendo essas pessoas que precisa ser analisado enquanto tal.
Este texto começou com uma digressão sobre as facadas contra uma tela de Di Cavalcanti que parece ter ficado perdida no primeiro parágrafo. Na verdade, era uma maneira de introduzir o verdadeiro argumento do artigo: em todo processo de insurreição popular ocorre a afirmação de que o povo representado pelo poder não é o povo real. Para os insurgentes, o povo real é aquele que destrói as representações do poder.
Por isso, nunca houve insurreição popular sem derrubada de estátuas, profanação de espaços públicos, degradação de patrimônio histórico e artístico. O poder público não é apenas um conjunto de aparatos de controle e legislação. É um conjunto de sistemas estéticos de apresentação do povo. É a gestão contínua de toda uma série de hinos, canções “populares”, espaços arquitetônicos, pinturas, imagens, poemas, romances que visam não exatamente a “representar” um povo, mas a construí-lo. E não há país melhor para demonstrar como isso funciona do que o Brasil.
De certa forma, o Brasil é uma construção estética. Se toda nação mobiliza, em alguma escala, tal dimensão para se constituir como povo, é fato que o Brasil moderno é impensável se não for visto também assim. Não é possível compreender os desejos de modernização e desenvolvimento no país sem articulá-los a um processo amplo de construção e modernização estética do próprio povo. O ápice disso é a criação de Brasília. Como dizia o crítico de arte Mário Pedrosa, na época da fundação da capital federal (e é bom que se leia isso reparando em seu tom de utopia concreta), “edificar a cidade nova é a maior obra de arte que se possa fazer no século”. Há que se acrescentar que quem constrói uma cidade não constrói apenas uma urbis: constrói também seus habitantes.
Como toda insurreição popular é, entre outras coisas, um processo de desautorização estética, o manifestante que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti ignorou não apenas este trabalho, como se indispôs contra as linhas curvas de Oscar Niemeyer, os murais de Athos Bulcão e o paisagismo de Burle Marx. Com seu gesto, ele queria dizer, como outros já disseram em vários momentos da história: “Esse povo representado pelas obras modernistas de Brasília não é o povo real. O povo está em outro lugar.”
Vale a pena refletir sobre isso com vagar. Porque é possível imaginar que algumas pessoas tenham dito: “Toda destruição popular de signos do poder tem algo de liberador. Não é possível criticar quem fez o que fez em Brasília em 8 de janeiro.” Mas essa posição resulta de um equívoco duplo. O primeiro consiste em acreditar que toda destruição é igual. O segundo, e ainda pior, que toda construção também é igual.
Comecemos pelo segundo erro. Como disse anteriormente, o Brasil “moderno” é uma ideia artística. A construção nacional tem entre seus eixos fundamentais o uso da modernização estética como força de redefinição do espaço, do tempo e do território. O Brasil entrou para a história como o único país do mundo (junto com a União Soviética), onde o modernismo se tornou um verdadeiro projeto de Estado. O que levou o arquiteto Lucio Costa, que fez o Plano Piloto de Brasília, a anunciar que, com a construção da capital, estava surgindo “uma nova era política, na qual a arte retomaria mais uma vez o controle da técnica”.
A ideia de construção estética de um povo, ou de fundação de um povo a partir de forças de produção simbólica e unificação social próprias a certas experiências artísticas, remete ao começo do século xix europeu. Todo professor de filosofia, classe na qual me incluo, conhece o sentido histórico de textos como A Educação Estética do Homem (1795), de Friedrich Schiller, e O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão (1796-7, de autoria incerta, é atribuído a Hegel, Schelling e Hölderlin). São textos que defendem a tarefa histórica de uso das artes como dispositivo de emancipação política e social. E não por acaso foram animados pelas transformações globais impulsionadas pela Revolução Francesa.
Uma das consequências de uma revolução popular é a crença de que podem emergir novas dinâmicas de constituição do povo, possibilitando a modificação estrutural da sensibilidade e da imaginação. Uma sociedade liberada da reprodução material de tradições e mitos fundadores pode mobilizar a experiência estética como solo de criação social de novas formas. Algo dessa crença orientou o desenvolvimento do modernismo em certos países de constituição nacional tardia, como o Brasil. Animado por um processo que não foi uma revolução social, mas uma “revolução pelo alto”, a partir de 1930, o Brasil utilizou o horizonte utópico do modernismo para impulsionar a formação de um Estado nacional propulsor de uma modernização “ambígua”.
O adjetivo “ambígua” não foi usado por acaso. Poder algum se associa à força construtiva de experiências estéticas autônomas sem que isso traga acordos instáveis e difíceis de controlar. O modernismo brasileiro não foi uma emulação do Estado. Ele se realizou como uma estética da conciliação nacional, em que a aspiração vanguardista de “criar um povo que falta” se encontrava com os desejos de modernização conservadora e de progresso do Estado populista brasileiro a partir da era Vargas. Para que essa conciliação funcionasse, foram necessários muitos apagamentos e silenciamentos. Pois, para criar um povo que falta, se faz necessário negar um povo que já existe, é preciso jogar na invisibilidade esse povo que não se adequa à geometria estelar e à amplidão do vão livre arquitetônico que o modernismo brasileiro consagrou.
Por outro lado, essa modernização – e aí está seu traço ambíguo – exige que não nos apoiemos mais no solo, no território, na tradição, nas formas já constituídas de vida. Ela pede um empuxo de criação e invenção que, como eu disse, nenhum poder consegue controlar muito bem. Imbuído desse espírito do modernismo brasileiro, Celso Furtado falava de uma improvável “fantasia organizada”, uma das mais belas expressões para se referir à utopia estética nacional. Algo não muito distante do que disse Lucio Costa, ao declarar que, com Brasília, havia construído uma cidade capaz de aliar “trabalho ordenado e devaneio”. De fato, o processo é contraditório, mas essa contradição é real. Triste o tempo em que o pensamento crítico não conhece mais contradições reais.
A pessoa que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti dentro do Palácio do Planalto agiu contra os dois lados da contradição. Ela recusou a conciliação prometida pela representação oficial do povo, dizendo com isso que há uma irreconciliação ativa, que esse não é o povo real. Mas não parou aí. Seu gesto incluiu ainda uma segunda intenção, que consiste em também não aceitar o empuxo de criação e ruptura que a construção modernista do povo expressou no Brasil. Esse segundo gesto inconsciente, mas brutalmente real por ser inconsciente, nos lembra do primeiro equívoco que mencionei antes: o de acreditar que toda destruição é igual. Há destruições que são a condição para se criar o que ainda não foi visto. E há destruições que apenas negam aquilo que ainda guarda a força silenciosa de criação de novas configurações sociais. Nesse caso, por meio da negação, busca operar uma restauração
Esse segundo gesto do agressor da tela de Di Cavalcanti só pode ser compreendido em sua real intenção se entendermos que o bolsonarismo não é simplesmente “a destruição da cultura”. É a encarnação de um embate centenário que atravessa a história do Brasil e consiste em tentar destituir um projeto de construção estética do povo em nome de outro, pretensamente mais popular e que não seja a expressão das “elites culturais globalistas”. O movimento será sempre este: o de construir esteticamente um povo, mas destruindo outro. No mesmo espaço.
Quando Bolsonaro perdeu as eleições e deixou os palácios da Alvorada e do Planalto, não foram poucos os que fizeram troça das “obras de arte” de gosto duvidoso recebidas pelo ex-presidente e empacotadas para sua mudança, como uma motocicleta esculpida em madeira, esculturas feitas de cartuchos de balas e quadros em que ele aparece ao lado de Jesus Cristo. As redes sociais se deleitaram com tamanha miséria estética. Eram trabalhos de cunho artesanal ou feitos por autodidatas que celebravam o próprio Bolsonaro. No entanto, qualquer pessoa familiarizada com o integralismo brasileiro não deixaria de reconhecer neles elementos estéticos do movimento, com sua mescla de formas populares, “poesia ingênua e sentimental” e referências religiosas e patrióticas.
De fato, o integralismo, ou seja, o fascismo brasileiro, foi inicialmente uma outra construção estética do povo – contraposta à do projeto modernista que predominou. O que não poderia ser diferente, se lembrarmos que o fundador do integralismo, Plínio Salgado (1895-1975), além de exercer a atividade política, foi escritor e participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e dos embates internos do modernismo brasileiro, tendo redigido seus próprios manifestos artísticos, como o do Movimento Verde-Amarelo, de 1926. A estética integralista celebrou outra forma de conciliação nacional, ainda mais violenta – e muito menos ambígua –, entre a acumulação capitalista primitiva, de cunho extrativista, a religião, a tradição e o extermínio indígena.
Como é um modernismo cortado de sua raiz de ruptura formal, mas que preserva seu desejo de autonomia do presente, o integralismo adequa a tradição às exigências de desenvolvimento predatório capitalista, que não verte lágrimas por aquilo que destrói. Ele é a expressão de um povo que estaria conciliado com a violência do progresso colonial e extrativista, do empreendedorismo capitalista, com a ordem atual da sensibilidade, que não questiona o que socialmente aparece como “natural”, as hierarquias “naturalmente” dadas (como as que constituem a família burguesa e o poder teológico-político). Muitos desses elementos serão atualizados nessa “estética da produção agrária exportadora” que sela a associação entre a indústria cultural brasileira e o bolsonarismo. Basta lembrar, por exemplo, a dicotomia construída por Plínio Salgado entre os tupis, que na concepção dele se permitiriam dizimar “pacificamente” para viver no sangue de cada brasileiro, e os tapuias, cujo ímpeto guerreiro e hostil à assimilação os levou ao completo apagamento.
Tudo isso indica um fenômeno que é importante não esquecer. Se há algo que a estetização política produzida pelo fascismo compreendeu é que não há insurreição popular sem reconstrução estética do povo. Há uma dimensão profunda dos embates políticos que são embates estéticos – entre formas distintas de afecções e circulação da experiência sensível. De certo modo, involuntariamente – como é involuntário todo verdadeiro ato político –, o manifestante que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti disse exatamente isso.
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