sábado, 22 de junho de 2019

Falta bom senso nas redes sociais? Ou tem demais?

“O bom senso”, escreveu René Descartes na abertura do "Discurso do método", “é a coisa mais bem compartilhada do mundo.” Mal poderia ele prever o que se compartilha hoje nas correntes de WhatsApp, fios do Twitter, comentários de Facebook ou grupos do Telegram. Parece haver de tudo nas redes sociais, menos um pingo de bom senso. Só que todos os que “compartilham” suas opiniões, ideias e — suspiro... — memes julgam tê-lo. Ninguém acha que tem pouco. “O que quer que alguém acredite ser questão de bom senso, acredita com certeza absoluta. Só fica espantado com o fato de que outros discordem”, diz o sociólogo canadense-australiano Duncan J. Watts em "Tudo é óbvio — Desde que você saiba a resposta". Lançado em 2011 nos Estados Unidos, o livro analisa as peças que o senso comum nos prega. Instintivo, natural, prático, o bom senso é essencial nas decisões cotidianas individuais: que roupa vestir, como pegar o metrô, quando obedecer às regras, quando ignorá-las e coisas do tipo. Mas se torna um péssimo guia para as decisões de natureza coletiva, relativas a política, Direito, economia ou cultura.

“Sempre que discutimos sobre política, economia ou a lei, usamos implicitamente nosso bom senso para extrair conclusões sobre como a sociedade será afetada”, afirma Watts. “Em nenhum desses casos raciocinamos sobre como devemos nos comportar, mas sobre como os outros se comportaram — ou se comportarão — em circunstâncias sobre as quais temos no máximo compreensão parcial.” Praticamente todas as discussões nas redes sociais padecem dessa deficiência: das cadeirinhas infantis à posse de armas, da homofobia às vacinas, da reforma da Previdência às privatizações, da intervenção na Venezuela aos vazamentos da Operação Lava Jato.

Watts é meticuloso ao despir o senso comum da aura sobrenatural de que se reveste para nos proteger das opiniões discordantes, da complexidade inerente às questões humanas e de nossa resistência para lidar com a ignorância diante de conhecimentos que não dominamos. Desmistifica os agentes racionais da economia, mostra que nem sempre penalidades inibem desvios, prova que os mesmos incentivos podem resultar em reações diferentes dependendo de fatores culturais, descreve como elementos aparentemente irrelevantes alteram decisões, constata que filtramos informações segundo nossas opiniões prévias, revela como somos presas de raciocínios circulares e de toda sorte de viés cognitivo. O principal deles é aquele que dá título ao livro: tudo parece óbvio depois que já aconteceu. Há uma diferença, bem menos óbvia, porém, entre entender o passado e usá-lo para prever o futuro.

Formado em física, doutor em sociologia e hoje pesquisador na Microsoft, Watts ficou conhecido pelo pioneirismo no estudo da disseminação de informações nas redes sociais (em sua tese, explorou a ideia célebre dos seis graus de separação entre duas pessoas). Com base em suas pesquisas, questiona o mito dos “influenciadores” digitais e analisa as razões reais do sucesso da "Mona Lisa" ou das músicas que chegam ao topo das paradas. Desvenda o enigma da violência nos protestos de rua. Mostra quanto a sorte e as circunstâncias podem ser mais relevantes que conceitos difusos como talento, genialidade ou “pessoas especiais”.

Mais que tudo, Watts faz um alerta para que ninguém julgue o próprio bom senso algo especial. É comum, diz ele, amigos e colegas aceitarem seu argumento no sentido abstrato, mas o rejeitarem quando aplicado às opiniões que abraçam com força. “É como se os erros do bom senso fossem apenas dos outros, não deles próprios.” O recado de Watts não poderia ser mais sensato: não é porque alguém discorda que é necessariamente idiota, canalha ou, para empregar o lugar-comum, “desonesto intelectualmente”. E não há nenhuma vergonha em mudar de opinião. Questão de bom senso, não parece?
Helio Gurovitz

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