sexta-feira, 19 de abril de 2024

Atacar crime organizado é estratégico

A relação do crime organizado com o Estado brasileiro se tornou um tema estratégico para o presente e o futuro do país. A prisão dos mandantes da morte de Marielle, a fuga de dois membros do Comando Vermelho de presídio federal de segurança máxima e a investigação sobre os tentáculos do PCC na administração pública em São Paulo revelam que as facções criminosas só são fortes porque seu negócio, o crime, está cada vez mais interligado com ação ou inação do aparelho estatal. Essa deveria ser a agenda prioritária da segurança pública do país, em vez de projetos aporofóbicos e sem embasamento em evidências, como a “Lei da Saidinha” e a PEC sobre as drogas.

É estarrecedor como os políticos e parcela da sociedade compraram um modelo demagógico para combater a criminalidade e a sensação crescente de insegurança. Há uma miopia enorme que gera decisões que, ao fim e ao cabo, somente vão fortalecer o crime organizado. Fim da “saidinha” e criminalização da posse e porte de drogas em qualquer quantidade terão como principal resultado o crescimento da população prisional, especialmente de pessoas pobres e negras. Isso só fortalece ainda mais as facções criminosas, que precisam de um exército de gente sem direitos nem esperança, produzindo assim uma máquina do crime cada vez mais poderosa.


O foco não deveria ser leis penais mais rígidas desenhadas para atingir basicamente os mais pobres. Da classe média para cima ninguém será preso por porte de drogas. Basta visitar as festas de jovens abastados ou da alta sociedade paulistana, carioca ou brasiliense para saber como o ilícito usado por seus participantes é invisível para as forças policiais. Assim, a descriminalização mais importante a ser discutida no país é a da pobreza.

Tampouco o endurecimento da ação policial resolverá a questão da criminalidade. A polícia paulista matou a torto e a direito a população vulnerável da Baixada Santista, e o PCC continua exportando suas drogas pelo porto de Santos. A política do “bandido bom é bandido morto” defendida pelo secretário Derrite não reduziu os crimes contra o patrimônio que ocorrem em São Paulo, que cresceram até no icônico bairro de Higienópolis. Há clamores morais em prol do punitivismo e da mão forte - muitas vezes ilegal - das polícias. Mas, ao final, produz-se incompetência em acabar com as raízes da criminalidade e imoralidade de ampliar o fosso da desigualdade.

Estrategicamente, só há uma saída para reduzir o peso da criminalidade sobre a sociedade brasileira: criar um projeto estrutural e de longo prazo para combater o crime organizado, que é capaz de afetar negativamente, e de forma ampla, o exercício da cidadania, a qualidade da democracia e o desenvolvimento econômico sustentável do país. Tudo isso acontece porque o Estado foi atingido em cheio por esse fenômeno.

Há duas formas de intromissão do crime organizado na atividade estatal: enfraquecendo as políticas públicas e gerando um relacionamento promíscuo com a política. Atuando nos dois campos, as facções criminosas reduzem a capacidade governamental de enfrentá-las. De um lado, amedrontando ou aliciando pessoas para servir ou comprar serviços de suas organizações e, de outro, corrompendo policiais e políticos para garantir salvo-conduto na prática diária de seus crimes.

Mais especificamente, o crime organizado afeta as políticas públicas de quatro modos. O primeiro é interferindo na provisão de serviços básicos à população, como fazem as milícias no Rio de Janeiro, prática que está se expandindo para várias partes do país. Em determinados territórios, o Estado e/ou concessionárias estão perdendo a batalha para as facções. Esses grupos mafiosos amedrontam a população para que ela seja obrigada a gastar boa parte de sua renda para pagar fornecedores ilegais de internet, água, gás, energia elétrica e tudo o que for possível de extorquir dos mais pobres. Cidadãos de áreas periféricas têm seus direitos vilipendiados sem que nenhuma força republicana consiga estancar essa enorme violência.

O segundo modo realiza-se pelo fortalecimento de atividades econômicas ilícitas para alavancar mais riqueza e, sobretudo, lavar dinheiro. O crime organizado é uma máquina de fazer negócios ilegais travestidos de legalidade. Mais uma vez as políticas públicas estão perdendo a batalha. Neste caso, estão sendo ineficazes para garantir e estimular o crescimento das empresas e do empreendedorismo sobre bases concorrenciais justas. O quanto o crime organizado está infiltrado do pequeno ao grande negócio no Brasil? Ninguém sabe o tamanho exato, mas quando facções dominam empresas de ônibus que ganham bilhões de subsídios da Prefeitura de São Paulo ou então se expandem em diversas atividades econômicas do mundo virtual, o sinal é assustador para o capitalismo brasileiro.

As políticas públicas têm um terceiro front de fragilidade frente ao crime organizado: a questão socioambiental. O Brasil tem nesse tema um dos seus ativos econômicos e geopolíticos mais importantes. Porém, atividades ilícitas extremamente violentas, como o tráfico de drogas, o garimpo ilegal e o desmatamento, são um empecilho gigantesco, se não o maior, a uma boa política ambiental. Mas não é só a natureza que sofre aqui. A população desses locais degradados por facções criminosas é refém de uma lógica equivocada de desenvolvimento, e enquanto o crime organizado dominar o pedaço, dificilmente haverá apoio a modelos mais sustentáveis.

O ciclo de impactos do crime organizado nas políticas públicas completa-se com um quarto elemento, o mais diretamente ligado a esse processo. As facções são o principal veículo da violência e insegurança que assolam o Brasil. Há crimes individualizados ou cometidos por pequenos grupos autônomos, mas isso é bem residual no conjunto do fenômeno. Obviamente que a organização cada vez mais efetiva dessas máfias, sua capacidade em adquirir armas e usá-las, a força que têm nas prisões, além dos negócios cada vez mais rentáveis, são aspectos que ampliam o seu poder.

Esse poderio, no entanto, só foi consolidado porque parcela das forças policiais foi conquistada pela corrupção. Assim, é cada vez mais difícil, em certos territórios, saber quem é polícia e quem é bandido, para lembrar da dicotomia básica que aprendi na rua quando cresci na periferia de São Paulo. Vale reforçar que policiais não só são comprados, como também estabelecem “tributos” para pagamento dos criminosos - o “arrego” no Rio de Janeiro e a “recolha” em São Paulo.

O impacto sobre as políticas públicas ampliou-se demais nos últimos anos por uma razão mais perversa: a entrada do crime organizado na política brasileira. Os recentes episódios envolvendo a morte de Marielle e as prisões de empresários e políticos envolvidos com o PCC mostram que essa temática poderá ter nos próximos anos o mesmo lugar central na agenda pública que teve a Operação Lava-Jato na década passada. Mesmo tendo cometido uma série de erros e ilegalidades, todas para favorecer politicamente agentes do sistema de Justiça, a Lava-Jato teve como maior legado a mudança na forma de financiamento eleitoral baseada nas trocas de dinheiro privado por benefícios públicos.

Há um novo cenário hoje: o crime organizado, junto com o golpismo de lideranças bolsonaristas, constitui um grande risco à democracia brasileira. No início, esse fenômeno se circunscrevia a algumas elites políticas locais e estaduais, especialmente no Rio de Janeiro, onde políticos apoiaram as milícias em nome da ordem - gente do bolsonarismo faz parte dessa história. A capacidade de se infiltrar na política cresceu vertiginosamente nos últimos anos, inclusive substituindo com dinheiro ilícito parte do financiamento privado que a classe política detinha no passado.

Vencer o crime organizado vai exigir um grande esforço nacional, um dos maiores de nossa história. Tal como ocorreu na maior frente ampla da política brasileira, que há 40 anos, completados nesta semana, organizou a campanha das Diretas Já para acabar com a ditadura militar. Líderes sociais, empresariais, religiosos e políticos vão ter de atuar conjuntamente e publicamente gritar contra o crime organizado. Para tanto, será necessário mudar estruturalmente a política de segurança pública, o que só será possível implementando efetivamente, e não com medidas fragmentadas e esporádicas, o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, um modelo que pode integrar o governo federal aos estados por meio de pactos institucionalizados e de longo prazo.

Como lembra Renato Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a profissionalização e a adoção de modelos de gestão consistentes, como em boa medida ocorreu no SUS, são fundamentais para que a cooperação federativa na segurança pública não seja mero discurso. Por essa linha, abandona-se o discurso demagógico que tem alimentado a discussão no Congresso Nacional. A saída para combater o crime organizado não é acabar com a “saidinha”, mas sim, um pacto amplo em torno de um SUSP efetivo. A pergunta incômoda é saber se a sociedade, policiais e políticos estão preparados para assumir essa bandeira. O medo maior é que parte do problema esteja no fato de que haja mais gente importante ligada às facções criminosas do que imaginaríamos nos nossos piores sonhos.

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