sexta-feira, 19 de abril de 2024

Governos para quê?

No caso da democracia, foi prometida uma resposta simples: “do povo, pelo povo e para o povo”. Será mesmo?

Ou, talvez: governos, para quem? No caso da democracia, foi prometida uma resposta simples: “do povo, pelo povo e para o povo”. Será mesmo? Tudo estaria resolvido se houvesse ao menos concordância na definição de povo.

A confusão começa com inúmeros grupos humanos sendo chamamos de ‘povos’ (indígenas, africanos, originários, tradicionais, europeus etc. etc.). Será que todos esses ‘povos’ já usufruem igualmente daquele exercício democrático de ser povo?

Como se não bastasse, no âmbito de cada um desses ‘povos’ há diversas estratificações econômicas e sociais que se apresentam de maneira muito diferente quanto ao acesso concreto às oportunidades e às garantias previstas na legislação de cada país.


Um caso claro é o das pessoas negras. Várias democracias modernas surgiram, a partir do século XVIII, convivendo com regimes escravistas. Nos EUA a abolição da escravidão só ocorreu uns cem anos após a Independência Americana. Na França a abolição foi conquistada anos após a Revolução Francesa e foi restabelecida por Bonaparte, antes de ser revogada em meados do século XIX.

Ao longo do século XX persistiu nas democracias a discriminação contra grande parte da sociedade, com a restrição ao direito de votar dos negros, mulheres, analfabetos e indígenas, por exemplo. Ainda hoje restam desigualdades profundas no acesso à educação, saúde, emprego, segurança, infraestrutura, moradia, transporte e outros serviços públicos ou privados.

Ao que parece, ao longo da história o Estado é reinventado periodicamente, em formatos que oferecem novas possibilidades de governança, adequadas às elites emergentes de cada época. A democracia prevê na sua certidão de nascimento as conexões que possibilitariam a liberdade, igualdade e soberania, ampliando a dinâmica de poder para além dos limites das cortes monarquistas.

Contudo, os retrocessos autocráticos periódicos refletem o esforço de recomposição dos desenhos originais de democracias pouco inclusivas, deixando a impressão de que os sistemas de governo não esquecem que foram projetados para viabilizarem a prosperidade e consolidarem a influência dos segmentos sociais que bancaram sua instalação.

Esse estilo “camarote vip” pode ser visto na composição do próprio Conselho de Segurança da ONU. Nesse ponto, os atuais ultraliberais e anarcocapitalistas preservam um vício de origem similar ao dos ditadores e populistas de leste a oeste do planeta. O retrocesso cíclico reflete a queda-de-braço estrutural entre o andar de cima do PIB (a quem os governos foram inventados para servir) e a base da pirâmide social (a quem os governos disseram que foram inventados para servir).

Por isso, o que Trump, Kim Jong-um, o talibã (e suas variações) têm em comum é a crença na desigualdade social enquanto chão de fábrica da concentração de riqueza, que segue sendo curiosamente, ao mesmo tempo, o principal propósito e o maior desafio dessa invenção milenar humana chamada governo.

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