“Na música, nas artes, estamos chegando a um ponto em que já não sabemos do que gostamos e do que não gostamos”, advertira Vargas Llosa. Na política, sua presciência arrepia. Na política brasileira, essa frase expressaria com precisão o caminho que nos levou à terrível polarização do segundo turno. Sem saber direito do que gostávamos ou não, deixamo-nos levar pelos anseios não de gente decente e inteligente na política, mas pela visão de corruptos e tontos.
Há tontos de todos os lados. Gente confusa que usa e abusa do termo fascismo. Gente confusa que vê risco de uma Revolução Comunista no Brasil. Gente nem tão confusa que vê no vácuo ambiente propício para uma escalada ao poder. Teve pouca repercussão na imprensa o manifesto “O Brasil para os Brasileiros”, o programa de governo elaborado pela bancada evangélica do Congresso. Muito bem redigido em várias partes, sobretudo nas propostas econômicas – sim, a bancada evangélica apresenta uma pauta econômica detalhadíssima – o documento é repleto de espantalhos quando se chega ao final. Lá estão os alertas sobre a doutrinação comunista a qual estariam sujeitos nossos jovens e crianças nas escolas.
Para quem não sabe, Vargas Llosa – que chegou a ser candidato a presidente no Peru – é político. Como político, é defensor do capitalismo, rechaça a ditadura venezuelana, tem horror ao chavismo-madurismo. Vargas Llosa é um liberal clássico, um liberal britânico. Há uma distância muito grande entre o liberalismo de raiz e o ideário libertário de botequim que tomou conta do debate brasileiro antes e depois das eleições.
O Brasil não está entrando nos trilhos do liberalismo. O liberalismo verdadeiro exige abertura e diversidade, se molda às necessidades contemporâneas como se moldou ao defender as respostas econômicas à Grande Depressão. Cede espaço aos direitos e às vozes de todos. O liberalismo verdadeiro não dita o que deve ou não fazer um professor em sala de aula, não se intromete nas escolhas individuais, reconhece a existência de desigualdades e prega a necessidade de reduzi-las da forma mais eficiente possível. No liberalismo verdadeiro cabe a social-democracia virtuosa, aquela que bem alinha o tamanho da rede de proteção social à prudência fiscal. No liberalismo verdadeiro não cabe a ultra-ortodoxia que reza pela primazia dos mercados sobre a sociedade. Essa ultra-ortodoxia asfixia as mesmas redes de proteção que o liberalismo verdadeiro reconhece como prementes. Ao asfixiá-las, alija da sociedade expressivos segmentos que carecem de representatividade política, tornando-os cidadãos de segunda classe. Não há nada mais antiliberal do que isso.
Não precisamos tirar os tubarões do formol, tampouco lá colocá-los. Precisamos estar atentos a eles para não transformarmos um País já degradado em algo irreconhecível.
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