Sempre disse aqui que o governo Bolsonaro era produto de três pautas um tanto vagas. Na verdade, um conjunto de intenções no terreno do conservadorismo cultural, combate à corrupção e reformas liberais.
As duas primeiras se perderam há muito tempo. Barradas pelo Congresso e por sua própria inconsistência. A agenda liberal deu em quase nada. A lei da liberdade econômica talvez tenha sido seu único suspiro. A reforma da Previdência foi uma solução de compromisso e veio no embalo do governo anterior.
Agora caímos na real. Estamos a menos de dois meses da campanha eleitoral e a janela de oportunidades para aprovação de reformas vai se fechando. Vamos comemorar o ano novo com PIB negativo em 5,6% (última pesquisa Focus) e relação dívida/PIB acima de 96%, segundo a Instituição Fiscal Independente.
Diante desse cenário, o governo corre atrás de “espaço no orçamento” para esticar mais um pouquinho o auxílio emergencial e diz que irá aguardar até o ano que vem para enviar ao Congresso a reforma administrativa. Ainda nesta quarta-feira, naquele pronunciamento esquisito ao cair da tarde, imaginava-se que haveria algum anúncio objetivo sobre reformas, mas nada.
Nenhuma grande surpresa aí. Pra quem gosta de ler a política um pouco abaixo da histeria reinante, Bolsonaro sempre foi um político mais tradicional do que fez parecer. E está cada dia mais com a cara do centrão e da velha burocracia militar do que com a de Paulo Guedes. Nosso outsider é cada vez mais um insider.
O governo gostou dos efeitos políticos do auxílio emergencial. O apoio a Bolsonaro cresce nos setores de menor renda e a última pesquisa DataPoder mostra que a aprovação e a desaprovação ao governo andam empatadas em 45%.
Quanto à reforma administrativa, o entorno da Presidência parece ter descoberto o óbvio: há muita conversa, mas pouca gente de fato preocupada com o tema em meio à pandemia. A MP 922, das contratações temporárias, caducou, e a PEC emergencial, que entre outras coisas previa a possibilidade de redução de jornada e salários dos servidores, nunca andou no Congresso.
A verdade é que o governo Bolsonaro não tem convicção sobre temas de modernização do Estado. E não está sozinho nisso. Os sinais que vêm do Congresso são bastante claros.
Exemplo foi a votação do novo Fundeb. Ao invés da reforma que iria desbloquear o orçamento e dar autonomia a estados e municípios, sob a lógica do “mais Brasil, menos Brasília”, a Câmara aprovou, sob a batuta da pressão corporativa e com o apoio do governo, a vinculação constitucional de no mínimo 70% dos recursos do fundo para gasto com pessoal.
No Senado fomos ainda mais criativos. Ao invés de reformas para abrir o mercado e incentivar a competição, resolvemos tabelar juros. Limite de 30% de juros no cartão de crédito e cheque especial. Lendo o projeto me senti quase um argentino. Menos mal que se trata de uma ideia que não irá prosperar na outra Casa do Congresso.
Juntando tudo, novo Fundeb, volta da CPMF, malabarismos para esticar o auxílio emergencial, tentativas de driblar a regra do teto, reformas e privatizações em ponto morto, o governo Bolsonaro vai mostrando o que sempre foi: um governo errático, sem projeto, seduzido pela hipótese de um populismo morno capaz de conduzi-lo vivo até 2022.
No fim das contas, ao menos não teremos que escutar mais que o governo Bolsonaro é “ultraneoliberal”, como li tempos atrás, e outras bobagens. Bolsonaro fará cada vez mais um governo tradicional. Com alguma sorte preservará a regra do teto e conseguirá emplacar algumas reformas de médio alcance, como foi o novo marco do saneamento básico.
Um projeto mais ousado de modernização do Estado ainda está para ser construído. Por enquanto, como observou Salim Mattar na sua carta de despedida, os liberais são um bicho estranho na máquina pública. E cabem (diria que com alguma folga) num micro-ônibus.
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